Os cientistas estão saindo de seus laboratórios para discutir se a droga deve ser legalizada. Do uso medicinal ao recreativo, saiba o que eles dizem
por Priscilla Santos e Felipe PontesEntre o Bem e o Mal
A mais recente compilação de estudos sobre a maconha é um relatório da Beckley Foundation, instituição inglesa que desde 2000 estuda práticas de alterações de consciência e as políticas para regularizá-las, publicado em livro este ano. Em Cannabis Policy - Moving Beyond Stalemate (Política da cannabis - movendo-se além do impasse, ainda sem edição no Brasil), especialistas em saúde pública e criminologia analisaram a relação de custo-benefício da proibição das drogas. A frase inicial de um dos capítulos deixa claro que os autores não negam os riscos médicos da substância, mas questionam se isso justificaria proibi-la. "Nas sociedades modernas, uma descoberta de efeitos adversos não determina o status de legalidade ou não de um produto. Se fosse assim, álcool, automóveis e escadas seriam proibidos." E as justificativas seriam ainda mais contundentes. O risco de um usuário se viciar em maconha está em torno de 9% (sobe para 16% no caso de adolescentes). O de nicotina é 32% e o de álcool, 15%.
Em uma avaliação publicada em 2007 no periódico médico britânico The Lancet, os riscos de 20 drogas foram hierarquizados considerando-se: 1) dano físico; 2) potencial de vício; 3) impacto na sociedade. A maconha ficou em 11º lugar, o tabaco em 9º, o álcool em 5º e a heroína em 1º. Não há registros de morte por overdose de maconha. Também tornou-se obsoleta a ideia de que a erva poderia destruir neurônios. Um estudo holandês de 2007 demonstrou não haver perda detectável de tecido nervoso no cérebro de usuários crônicos de maconha, como acontece com outras drogas.
Os quatro neurocientistas que se manifestaram publicamente sobre a política de repressão à maconha no Brasil. "O que precisamos discutir são quais os tipos de malefícios "menos prejudiciais" à sociedade: os efeitos da maconha no indivíduo ou a violência associada ao tráfico?", diz Rehen
Crédito: Victor Affaro
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Mas o grupo de maior risco é mesmo o de adolescentes, mais vulneráveis a problemas cognitivos e psicológicos que poderiam ser provocados pela droga. A maconha prejudica a chamada memória curta, ou seja, a capacidade de lembrar de algo que se acabou de ver ou aprender. Como seu efeito agudo dura cerca de três horas, mas continua ativo no organismo por mais nove, o desempenho escolar tenderia a cair. A erva também faz subir os riscos de psicose e ataques de esquizofrenia nessa faixa etária. Em um estudo sobre a relação entre cannabis e esquizofrenia, pesquisadores acompanharam mais de 50 mil suecos durante 15 anos. Revelaram que aqueles que experimentaram maconha por volta dos 18 tiveram uma propensão 2,4 vezes maior à doença. De todos os efeitos indesejáveis apresentados pelo relatório, o único que o neurocientista Renato Malcher, co-autor, junto com Sidarta Ribeiro, do livro Maconha, Cérebro e Saúde, relativiza é a esquizofrenia. O argumento é que não se sabe o que vem antes, o ovo ou a galinha. Ou seja, se pessoas fumaram maconha e ficaram esquizofrênicas, ou se já eram esquizofrênicas antes da primeira tragada. "Muitos portadores da doença usam a droga para aliviar os sintomas", afirma Malcher. Afinal, os efeitos calmantes e sedativos são apenas um dos benefícios da erva já comprovados cientificamente.
RONALDO LARANJEIRA
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Por que você é contra a legalização? Sou contra qualquer mudança de política em relação à maconha que possa aumentar o consumo. No Brasil, de 2% a 3% da população fuma regularmente maconha. Em alguns países europeus, nos Estados Unidos e Austrália, a média é de 20%. Mas, ao contrário deles, nós não temos uma rede de proteção para as pessoas que desenvolvem transtornos mentais ou problemas sociais por causa da droga. É errado simplesmente discutirmos modelos que funcionam em outras nações, outras culturas. Eles podem servir de inspiração, mas nós precisamos estudar um pouco mais o impacto da nossa lei e, a partir daí, fazermos experiências em algumas cidades ou estados para ver qual seria o melhor modelo para o Brasil. O problema seria de saúde pública? A legalização aumentaria o consumo e facilitaria o acesso à maconha. Se fosse permitido que todo mundo plantasse maconha em casa, não só as pessoas que consomem plantariam. Os grandes traficantes também, para fornecer a droga. O afrouxamento dos controles sociais em relação à maconha seria exatamente o oposto do que tem sido feito com o tabaco e o álcool, e não resolveria o problema. Estamos frente a um contrassenso. Para mim, o argumento de que as pessoas têm o direito sobre o próprio corpo é muito mais sério do que falar que a legalização da maconha não vai ter consequências sociais e de saúde pública. O tráfico não diminuiria? Essa é uma grande ilusão, porque o tráfico é mais sofisticado do que pensamos. Para competir com ele, seria preciso ter uma maconha mais barata e concentrada. Porque se você vender um cigarro de maconha por R$ 5, o tráfico estará vendendo a R$ 1. Com a legalização, a oferta de maconha vai aumentar, além de o tráfico continuar a vender ilegalmente. E se colocarmos no mercado uma maconha mais pura e forte, do ponto de vista de saúde pública, seria uma temeridade. Não há uma solução simples, não basta apenas legalizarmos a maconha. Essa justificativa de combate ao tráfico é uma ilusão quase que pueril. Remédio natural Em maio deste ano, o psicofarmacologista do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Unifesp, Elisaldo Carlini, realizou um simpósio para discutir a criação de uma agência brasileira de cannabis medicinal, proposta ao governo. Carlini estuda o assunto desde a década de 50, quando ainda era aluno de medicina da Unifesp, mas o tema é bem anterior a isso. A mais antiga enciclopédia de medicamentos do mundo, o Shen-nung Pen-ts' ao Ching, escrita na China no século 1, indicava a maconha para tratamentos de doenças como dor reumática, constipação e malária. Desde então, a erva foi usada como remédio, inclusive vendida em boticas no interior do Brasil. Dos anos 30 em diante passou a ser considerada uma droga maldita para, nos anos 60, ser colocada pela ONU no mesmo balaio da cocaína e do ópio. Os estudos minguaram. Afinal, como conseguir recursos para investigar uma substância proibida? Foi em Israel, que sempre adotou uma política mais liberal em relação à droga que, em 1964, o pesquisador Raphael Mechoulam isolou seu principal composto, o tetrahidrocanabinol, ou THC, um dos 70 canabinoides (substâncias químicas com estruturas semelhantes presentes na maconha), para estudar seu efeito. A experiência foi bastante empírica: Raphael preparou um bolo recheado com THC e o serviu a dez amigos. Alguns ficaram falando sem parar, outros sonharam acordados e outros disseram não sentir nada - e de repente disparavam a rir. Provou-se aí que o THC em si era o responsável por produzir os principais efeitos da maconha. Foi o primeiro passo para se entender sua atuação em nosso cérebro. E abriram-se as portas para uma guinada científica na história da droga, em 1988: a identificação dos endocanabinoides. Trata-se de um sistema de substâncias produzidas por nosso organismo, semelhantes às encontradas na maconha - e capazes de desencadear os mesmos efeitos. "Até então, não se sabia ao certo como era o funcionamento da erva em nosso corpo", diz Malcher. Com a descoberta dos endocanabinoides foi possível avançar nos estudos desses efeitos e, como resultado, produzir os primeiros medicamentos à base de substâncias presentes na maconha. O THC, por exemplo, possui mais de dez propriedades médicas, entre elas a de analgésico, antináusea, sedativo e anticonvulsivo. Virou princípio ativo do Sativex, um dos pelo menos quatro medicamentos fabricados atualmente com substâncias da cannabis, comercializados em países onde o uso medicinal é permitido. O remédio é usado contra dores crônicas em portadores de esclerose múltipla. Para minimizar náuseas e vômitos provocados pela quimioterapia em pacientes com câncer e tratar caquexia, magreza extrema provocada por doenças como a Aids, está no mercado o Marinol. À base de THC, é aprovado pelo FDA, agência americana de controle de alimentos e medicamentos. Remédios fabricados com canabinoides também poderiam ser administrados em pacientes com Alzheimer. Em alguns casos, o uso da própria erva, vaporizada, seria recomendado. "Existe o lado bom de ter um pacote de efeitos que inclui a sensação de bem-estar", diz Malcher. "Não tem que olhar isso como um pecado do remédio, mas como vantagem." Com tantos potenciais, é pouco comum encontrar especialistas que sejam contra o seu uso medicinal. Ainda que alguns façam ressalvas e acreditem que é necessário realizar mais testes. Nem de longe, porém, o tema gera tanta polêmica quanto o chamado uso recreativo, ou seja, consumir apenas para se divertir. Nesse caso, a questão não é somente médica, mas política e social.
O X da questão
Os neurocientistas não carregam sozinhos a bandeira da legalização da maconha. No ano passado, foi criada a Comissão Brasileira Sobre Drogas e Democracia, dirigida por Fernando Henrique Cardoso. O sociólogo e ex-presidente do Brasil segue os passos de outros dois ex-chefes de estado: César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México. Esses líderes estudam uma política de diminuição dos danos das drogas, já que a guerra a seu combate demonstrou-se falida. O mercado mundial de drogas ilícitas fatura por ano cerca de US$ 320 bilhões. Nem um centavo é revertido para o governo. Pelo contrário. Somente nos Estados Unidos, são gastos US$ 35 bilhões por ano em repressão ao tráfico. "Se investissem isso em campanhas de educação para as drogas, o resultado seria muito melhor", afirma Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. A socióloga defende a legalização de todas as drogas, com regulamentação e taxação sobre elas e investimentos dos recursos recolhidos no tratamento de dependência química. Apesar de todo o aparato de repressão, no mundo cerca de 160 milhões de pessoas fumam maconha.
ANA CECÍLIA ROSELLI MARQUES > Para a psiquiatra da Unifesp, o Brasil não deve legalizar a cannabis. "Aqui qualquer um enche a cara e dirige. O mesmo impacto teria a maconha."
Crédito: Victor Affaro Nesse momento, o que é justificativa para proibição pode se transformar em argumento de defesa da legalização. Para o neurocientista João Menezes, se o jovem é o maior alvo dos efeitos maléficos da planta, só a legalização poderia protegê-lo. "Seria possível regulamentar a venda da droga, proibi-la para menores de 21 anos e criar campanhas educativas sobre seus riscos", diz. Além disso, se passaria a cobrar impostos sobre a venda e multas no caso de comércio irregular. "Aí a fiscalização não seria mais realizada pela polícia, mas por agentes de vigilância sanitária e da receita federal. Não é o revólver, é a caneta", afirma. Para Sidarta, a regulamentação também seria uma forma de controlar a qualidade da droga. "Com ela, as impurezas caem. Quando o álcool era proibido, certamente se faziam bebidas com metanol em casa." Foi assim durante a Lei Seca que vigorou nos Estados Unidos entre 1920 e 1933 e que, em vez de diminuir os índices de violência, acabou por fortalecer as máfias locais. "A campanha deve ser de controle e informação, não de repressão", diz Sidarta.
O principal contra-argumento de quem se opõe à legalização é que a medida não diminuiria o narcotráfico. Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, para competir com o tráfico a maconha legal teria que ser mais barata e com maior concentração de THC. Pois, se um baseado custar R$ 5, o traficante vai vender por R$ 1. "Com a legalização, o tráfico vai continuar. Vai-se aumentar a oferta de maconha com o sistema legal e o ilegal em paralelo", diz. O medo aí é uma sobrecarga na saúde pública. Apesar disso não ter sido uma grande questão em países em que o regime de drogas se tornou mais liberal, a exemplo de Portugal e Holanda, a psiquiatra Ana Cecília Roselli Marques não acredita que o Brasil esteja preparado para essa mudança. "Não damos conta sequer dos problemas gerados pelas drogas lícitas, como o álcool e o tabaco." Ela não acredita que os impostos arrecadados com a maconha legalizada seriam reinvestidos em saúde pública. "Pode procurar: onde se encontra tratamento gratuito para tabagistas?" Por mais que os estudos científicos tenham avançado e que comissões tenham sido criadas para pesquisar formas de diminuir os males sociais causados pela droga, a discussão está longe de um resultado concreto. Pelos neurocientistas que colocaram sua opinião abertamente para a sociedade, isso não é problema. Já que a intenção não é que se criem políticas públicas de imediato, mas incitar a discussão para uma transformação verdadeira. "O cientista é cidadão e tem o dever de informar. Não adianta só publicar artigos, se seu impacto na sociedade também pode vir da forma com que ele se expressa e como contribui para o debate", diz Stevens Rehen. Se conseguirem despertar essa mudança de perspectiva, por ora, os autores da carta que inaugurou essa nova polêmica já se darão por satisfeitos.
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