São Paulo. Em função da dinâmica e estrutura de atendimento aos pacientes em ambulatório e principalmente pelo reduzido número de psicólogos no Hospital do Rim, ainda não está sendo possível atender o paciente no período que antecede o transplante, embora o ideal fosse atendê-lo neste momento para acompanhá-lo e ajudar a família durante o processo de exames para identificação da compatibilidade. Uma coisa é ser compatível, outra é estar disponível para ser doador. Às vezes, descobre-se que um membro da família é compatível e essa pessoa não tem a liberdade de não querer doar. Existe uma expectativa da família e do próprio receptor em relação ao possível doador. Este é um período permeado de muita expectativa tanto por parte do receptor quanto por parte dos membros da família envolvidos nesse processo. Nesse período muitas questões afetivas e emocionais são mobilizadas tanto em quem está precisando do órgão, quanto em quem está envolvido como possível doador. Brigas, desafetos e ressentimentos aparecem para dificultar a doação/recepção. Por exemplo o possível doador pode ser justamente aquele com o qual o receptor teve brigas ou desavenças e na hora de receber um órgão dessa pessoa, essas questões podem surgir. Muitas vezes o paciente acredita que o órgão dessa pessoa vem carregado com as características dela, e se forem ruins tem receio de receber esse órgão. Essas questões raramente aparecem para o médico que está envolvido com questões práticas do transplante, mas aparecem num atendimento psicológico e muitas vezes são essas fantasias que podem contribuir para um processo de rejeição, porque o paciente acha que aquele rim é ruim. No Hospital do Rim o atendimento psicológico ao paciente se inicia quando ele e o doador se internam e dura o tempo necessário durante a hospitalização.
O paciente quando chega ao transplante, já é um paciente crônico que está em tratamento há tempo, e as possibilidades de "cura" foram se esgotando . Para o paciente a indicação do transplante é vista como uma grande perspectiva de cura, existe muita expectativa, um novo horizonte se abre. A expectativa do doente é voltar a ser o que era antes de adoecer, a expectativa do transplante traz sempre uma sempre magia. Por outro lado, quando há a possibilidade de doador vivo, como no caso do rim, o paciente também fica muito incomodado em pedir para alguém ser doador. Em geral, quando a família ainda está verificando a compatibilidade, o paciente vive um momento de expectativa, aguardando que alguém se ofereça, nunca se sente na liberdade de pedir "parte do corpo do outro" para si. Ele espera que alguém se disponha a doar e há famílias em que nem todos os membros se dispõem a doar. Muitas vezes durante o atendimento o paciente comenta que alguém poderia ter doado e não doou, fala do seu ressentimento e mágoa mas não fala para a família. Para muitas pessoas existe o medo de tirar o órgão e ficar mais frágil por causa disso. Muitas vezes o doador é identificado pela compatibilidade e cria-se sobre ele uma pressão meio velada da família para que doe.E não conseguindo lidar com essa pressão, ele doa mesmo sem querer. Neste caso se o receptor vier a perder este órgão, ele irá sentir muitas vezes culpado, como se tivesse lesado o outro, não tivesse sabido aproveitar o órgão que recebeu. Isso é um sofrimento muito grande para o paciente suportar juntamente com o fato de ter perdido o órgão e precisar retornar ao tratamento anterior. Por outro lado, já se observou relatos de familiares cobrando esta perda, o que é pior ainda. Algo do tipo "você perdeu o órgão que seu irmão te deu". Estas questões devem ser muito bem trabalhadas para evitar estes conflitos que interferem e dificultam o curso do tratamento.
A situação de transplante sempre mobiliza muitas fantasias. Quando é doador vivo, existe a fantasia de que o órgão venha carregado com as características (boas ou más) do doador. Se o doador é uma pessoa afetiva, amorosa, boa,correta, o receptor acredita que esse órgão é bom, mas se a pessoa é rude, brava, criou problemas ou brigas familiares, a crença do paciente muitas vezes é de que não é bom. Ocorre geralmente a ideia que se recebeu no órgão do outro algumas características da pessoa que doou. Quando o órgão vem de doador cadáver,como este é um desconhecido, isto favorece a que o paciente crie muitas fantasias sobre quem era a pessoa de quem recebeu o órgão. Como o paciente muitas vezes tem acesso a dados do doador, ouve-se várias vezes o paciente verbalizando que o rim é bom porque o doador era jovem. Acreditam geralmente que é melhor, pelo órgão ser mais novo, portanto mais saudável e com mais chance de dar certo.Se o doador é mais velho e por acaso o transplante começa a dar problema, o paciente atribui a causa a um rim mais usado, gasto. Depende o que o órgão representa para cada pessoa, cada um cria uma expectativa, uma fantasia, que pode facilitar ou dificultar o curso do processo.
Quando a pessoa adoece, esse processo já implica numa restrição de sua vida. Então se ela tinha um papel na família, ao adoecer, muda seu papel e todo mundo se sente afetado com isso. Isto significa que todos os membros vão ter que assumir uma nova conduta, podendo em alguns casos haver inversão de papéis. Por exemplo, se o pai é o provedor da família e adoece, às vezes acontece da mulher ter que trabalhar e o pai assumir as responsabilidades da casa. Além da perda da saúde, da autonomia, ainda tem a perda do papel profissional. A família sofre mudanças muito significativas neste sentido. No caso de um renal crônico, ele é alguém que não pode estar participando de muitas atividades familiares, nem pode comer o mesmo que os outros da família e isso vai muitas vezes segregando-o, porque a vida social fica comprometida. Ele é limitado pela restrição alimentar, líquida e até física. E no caso do diabético em diálise ainda é pior. O importante é a família dar apoio, incentivar o paciente e o tratamento, se reorganizar para abrir o espaço para o paciente se ausentar de seu papel. Porém, só faz isto quem tem estrutura, porque muitas vezes é difícil para a família dar esse apoio. O ideal seria o paciente e a família,ao saber da necessidade do transplante, buscar um suporte através da orientação psicológica.
Essa é uma relação muito complicada. O médico deve estar esclarecendo e orientando todas as possibilidades, tirando dúvidas do paciente e da família. Acreditando na chance do tratamento ou do transplante,ele ( médico) luta por isso e quer que o paciente colabore. Muitas vezes o fato do paciente ter medo, receio e não querer fazer o transplante ou nem sempre colaborar como o médico gostaria cria dificuldades para a relação, porque vai contra ao que ele se propõe fazer. Esta relação é básica, não só na situação de transplante, mas em qualquer problema de saúde que se tenha. Seria muito bom se os médicos pudessem perceber que há uma esfera de uma psicológica, emocional, e solicitar que haja atendimento psicológico para se trabalhar em conjunto. Muito poucas vezes eles estão atentos a esta questão. Não dá para separar o físico do emocional. Tem que ser um trabalho conjunto porque ajuda o médico e o paciente. O médico fica mais tranqüilo quando sabe que o psicólogo está cuidando de aspectos que ele não consegue lidar, mesmo porque ele não é uma pessoa preparada para isto. A repercussão desse trabalho é positiva no pós-transplante. Até mesmo para lidar com a perda, a rejeição. O chegar ao transplante descortina para o paciente a possibilidade de mudar a vida, conquistar uma vida mais saudável, recuperar os projetos de vida e, de repente, perder isso é o mesmo que colocar o pé no céu e despencar.
Se o transplante der certo, o médico é o máximo para o paciente, foi o responsável por isso. O paciente transplantado não é um paciente que se desliga do médico após o transplante; pelo contrário, é alguém a quem ficará vinculado para o resto da vida, pois quaisquer intercorrências de saúde deverá ser acompanhada pelo médico que realizou o transplante ou sua equipe.Mas se o transplante não der certo, o paciente pode achar que foi por causa do médico. Muitas vezes, a complicação na relação pode ocorrer pelo fato do paciente achar que o médico não o acolheu, não o tratou, nem o entendeu. Quando não se tem confiança não se pode esperar nada. Muitos pacientes podem vir a se tornar pacientes psicologicamente crônicos. Eles têm uma afecção crônica, mas também existe uma demanda psicológica, porque de alguma maneira têm ganhos com o adoecimento: a atenção ou carinho. Esses pacientes parecem, muitas vezes, que não podem ficar saudáveis porque isso significa uma grande perda para eles, mas isso é muito subjetivo, depende muito do processo de cada um, o que está ganhando e o que está perdendo. Se o paciente faz o transplante e é bem sucedido, deve estar resgatando coisas da vida dele que perdeu e isso geralmente é muito bom para o paciente .Se não consegue fazer isto pode ser porque o mundo externo seja tão ameaçador que ele prefere ficar protegido na doença. Isto vai depender dos recursos psicológicos de cada um.
Existem fatores psicológicos que contribuem para a rejeição. Se a pessoa recebe um órgão e começa a criar uma fantasia ruim a respeito dele, isso de alguma maneira pode predispor negativamente o paciente, ao receber aquele órgão. Tudo o que vai acontecendo de errado acaba sendo atribuído aquilo. Vai criando uma crença de que aquilo é algo ruim para ele. Claro que não é tudo psicológico, às vezes, acontece uma infecção, mas existe uma pré-disposição para até possibilitar que isso aconteça. Como o paciente lida psicologicamente com a rejeição? Se o indivíduo é um paciente crônico e existe a possibilidade de reverter essa condição, toda expectativa será depositada no transplante. Se o paciente vive essa "liberdade" conseguida pelo transplante e perde isso, ele sabe o significado dessa perda. Isso é muito pesado. A elaboração de uma perda é muito difícil, é um luto enorme.
O que percebe-se é que com os pacientes que são atendidos não chega a ser uma depressão, é uma tristeza. Essa tristeza pode ser devido à ansiedade, o medo do transplante não dar certo ou pode ser mobilizada por outros fatores: o afastamento da família ou como vai se posicionar quando voltar para casa. Para o doente, o medo e a tristeza são um sentimento comum, pois adoecer é sempre uma situação de perda.
Seria muito legal que todas as pessoas no processo de adoecimento e principalmente no processo de transplante pudessem contar com o atendimento psicológico. Ajuda o paciente, o médico e a família. É uma situação em que a dimensão psicológica está muito presente o tempo todo. É uma situação delicada e as equipes de transplante deveriam contar com esta ajuda. Uma boa preparação favorece uma melhor recuperação e adaptação do paciente.
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