nenhum cidadão mostrar-se indiferente ou alheio. Da mesa do jantar às rodas de conversa no
trabalho, das escolas aos becos, do zum-zum no transporte coletivo aos gabinetes políticos,
da polícia à igreja, da imprensa às praças públicas e às casas legislativas, um mesmo tema: a droga.
As conversas giram sempre em torno da receita para o “que não tem receita, nem nunca terá!” Não
é mera poesia, é do humano não caber em receitas. Mas, neste caso, a receita para o que escapa
à norma foi dada. A prescrição médica, psicológica, jurídica, social e política sentencia: fora de
nós, fora da civilização, rumo aos confins do humano. Sem compaixão com a dor e, sobretudo, sem
respeito à cidadania do outro, mas também à nossa, este veredicto arbitra sobre a questão de modo
único, total e violento. O que ele revela sobre nossa sociedade?
O modo como o debate é feito – barulhento, autoritário, monotemático – faz pensar que muito se
fala para que não se veja, no espelho da pergunta, o retrato de outras mazelas e injustiças, ainda não
superadas: a falta de escola, a fome, a ausência de trabalho, de cultura, de lazer e de moradia para
todos, para ficar nas mais recorrentes formas de violação de direitos, convivem lado a lado com novos
problemas e são indicadores de fragilidades sociais que retratam a perpetuação da má distribuição da
riqueza coletivamente produzida. A inserção das pessoas que vivem a ausência de direitos nas redes
do tráfico tem como resultado esse cruel mercado de trabalho para jovens, crianças e adultos pobres.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) vem a público declarar a legisladores, gestores, juízes,
promotores, especialistas e à sociedade sua posição: não há saída para o sofrimento humano – seja este
consequência da submissão do homem a um objeto químico ou não – fora da cidadania. Não há possibilidade,senão no laço solidário e ético com o outro, para a invenção da humanidade de cada um.
Como ator histórico e ativo em lutas pela defesa da cidadania dos loucos, das crianças e adolescentes,
entre outros sujeitos marginalizados, o CFP tem trabalhado pela construção de políticas públicas
efetivas que teçam a rede de suporte necessária à superação de diferentes fragilidades e vulnerabilidades
sociais. Nosso compromisso ético-político é com a construção de uma sociedade efetivamente
justa e democrática. Sociedade capaz de ofertar a seus membros as condições para o exercício de
uma vida digna e com horizontes. Tal sociedade produz mais escolas que cadeias, mais praças que
espaços de segregação e exclusão, mais cidadãos que restos sociais.
Muitos oferecem à sociedade tentadoras e ilusórias propostas de solução para algo que não
surgiu hoje. O laço entre o homem e a droga não é novo, nem são novas as propostas de solução
que projetam na exclusão o remédio. Requentando um modelo antigo e autoritário, o da segregação,
a sociedade e o Estado brasileiros desrespeitam sua melhor e mais bela conquista: a aspiração à cidadania
como solo de direito para todo homem e toda mulher deste país.
decisão da sociedade, em nome dos clamores de alguns. Por isso, conclamamos os gestores públicos
federais da saúde e de todas as políticas públicas a respeitar as decisões da IV Conferência Nacional
de Saúde Mental, não impondo à rede de saúde a filiação às comunidades terapêuticas,
instituições que, muitas das vezes, em nome do bem do outro, violam direitos, maltratam e violentam o
corpo e as vidas daqueles de quem querem cuidar.
Com coerência e respeito, a Reforma Psiquiátrica e o Sistema Único de Saúde ensinam ao país
que a saúde não é objeto mercantil, não se vende nem se compra. É direito e garantia constitucional
e deve ser instrumento de libertação, não de segregação.
O coletivo que faz a Reforma Psiquiátrica no país já assumiu a responsabilidade que lhe cabe
nesta questão: o cuidado em liberdade com os usuários de álcool e outras drogas. Com as tecnologias
de cuidado inventadas pelo processo de desconstrução do manicômio, propõe a criação de uma rede
diversificada e territorializada de serviços que ofertem cuidados desde o momento mais grave, das
urgências clínicas e psiquiátricas, com criação de leitos em hospital geral para os quadros de intoxicação
e de abstinência grave, a implantação de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), das Casas
de Acolhimento Transitório (CAT), de equipes de Consultórios de Rua, de equipes de saúde mental na
atenção básica, entre outros.
Além dos recursos sanitários e de atenção psicossocial, o coletivo da Reforma Psiquiátrica
reafirmou a necessidade da criação de políticas e serviços de proteção e suporte social como
medida para enfrentar fragilidades decorrentes das ameaças à vida, da ruptura de laços e da falta
de apoio sociofamiliar.
Sem temer o homem e sua droga, não nos afastamos do outro pelo “veneno” que lhe proporciona
prazer e dor. Tememos, sim, a ditadura da segregação como modo de tratar, a prática
da higienização social, que sequestra homens e anula direitos; tememos e repudiamos a guerra às
drogas, que mata muito mais que o inimigo que elegeu: as drogas; tememos e não desejamos que o
encarceramento dos jovens seja a única solução proposta para os que se envolvem com o tráfico e não
queremos assistir à perpetuação da desigualdade social como futuro único para tantos e responsávelpelos milhões de vidas miseráveis e escravas da precariedade e da falta de oportunidades.
Queremos ver o Brasil fazer valer os desejos que deram origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente, à lei de Reforma Psiquiátrica, com a assunção de crianças, adolescentes e loucos ao campo da cidadania; ao Sistema Único de Saúde que inaugura a escrita da saúde como direito de todos e dever do Estado e a propõe como suporte de cuidado e construção da cidadania. Queremos um país democrático e, por isso, justo, digno e lugar de exercício da responsabilidade de todos e de cada um, no qual o lugar das diferenças seja dentro, e não em seus confins e exílios.
Para aderir ao manifesto, visite http://www.peticaopublica.com.br/?pi=CFP2011A.
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