Mãe, maternidade, gravidez. Significantes que remetem à vida, continuida- de, esperança, saúde. Com o que lidar quando o que se espera é um feto malformado, incompatível com a vida? |
É nesse lugar, onde a vida por vir é a quase espera da morte, que se desenvolve este artigo.
Trata-se de um Centro de Medicina Fetal (CEMEFE/HC UFMG) que recebe gestantes, encaminhadas de outros centros de saúde (SUS, Hospitais do Interior do Estado e da Capital), cujos fetos têm problemas graves de desenvolvimento, das mais variadas causas, e a sentença final é quase sempre a mesma: pouca ou nenhuma chance de sobrevivência. Nos casos em que a criança sobrevive, normalmente, terá seqüelas.
Não se trata de uma gravidez que põe em risco a saúde física da gestante, e sim do feto. Este sim corre riscos.
Ouvir as mães desses fetos é tarefa da Psicologia. É transformar essa situação de risco para o feto em discurso da mãe. Há o feto e o afeto. O analista vem permitir que o afeto solto seja direcionado e ganhe um novo significado. Fazer desabafar, esvaziar, verbalizar.
A psicóloga tem contato com a gestante desde sua primeira consulta com o obstetra. Faz parte do protocolo ter pelo menos uma entrevista psicológica. A maioria das mães aceita esse acompanhamento, sentindo-se amparadas e ouvidas por alguém fora da família que as convida a falar e manifestar seus sentimentos frente à gravidez e suas questões de uma maneira geral.
Tal acompanhamento segue durante todo o seu trajeto no Hospital, e em caso de demanda, a psicóloga acompanha os procedimentos invasivos, a internação, a permanência no pré-parto, o parto e as primeiras horas de recuperação.
A seguir, a trajetória das pacientes desde o encaminhamento ao Centro até a alta hospitalar, dando maior ênfase ao acompanhamento psicológico. Considerando, nessa trajetória, apenas as gestantes cuja gravidez chega a termo. Há casos em que a perda do feto vem encurtar a permanência das mães no hospital.
1. As Pacientes
A gravidez é um período de transição que envolve a necessidade de reestruturação e reajustamento. Trata-se de mudanças físicas e emocionais profundas, onde há ambivalência de sentimentos. A gestante deseja a criança, ao mesmo tempo que a rejeita e a teme.
Segundo Maldonado1, no caso de uma gravidez em que há riscos, as ansiedades e os medos da mãe são potencializados. Além das expectativas ditas normais relacionadas a esse período, somam-se sentimentos de punição e culpa por estar gerando uma criança malformada. Sentimentos de regressão e fragilidade também são observados.
Não se trata de desculpabilizar, mas desangustiar. É implicar e retificar. É fazer perceber qual a sua parte na história.
A mãe foi feita para dar vida, sendo sensível a qualquer atentado à vida que sai dela. Gerar um ser imperfeito é estar atentando contra sua própria natureza materna. “Após 10 anos tentando engravidar, vem logo esse neném cheio de problemas?”
“Foi vacilo meu, mas depois que soube que estava grávida, eu até amei a criança, e agora, sei que ela vai morrer.”, são algumas das falas de mães atendidas pelo serviço.
Criar um ambiente onde elas podem ser ouvidas e acompanhadas é de suma importância.
O CEMEFE/HC UFMG recebe tais pacientes com fetos malformados, de todo o Estado de Minas Gerais. São mulheres entre 16 e 45 ou mais anos, de todas as raças, cores, credos e níveis socioculturais.
2. O encaminhamento
Os Postos de Saúde e demais Hospitais encaminham ao CEMEFE/HC UFMG as gestantes cujo ultra-som revelou algum tipo de malformação fetal. Diante desta realidade, duas mães assim se referiram ais fetos malformados:
“O médico do posto disse que o problema é na cabecinha do neném.”
“O ultra-som mostrou que tem água no pulmãozinho dele.”
Passar a fazer o pré-natal no Centro é sinal de alarme. Essas mães sabem que foram encaminhadas porque algo está errado com a gravidez. Significa trocar de médico, estabelecer nova relação transferencial, confiar naquele que vem para falar da possibilidade de morte.
É o próprio obstetra quem esclarece o quadro e dá o diagnóstico à paciente. Explica os procedimentos clínicos que serão iniciados, sem falsas esperanças ou promessas.
Por mais claras que sejam as explicações médicas, as pacientes esperam obter uma solução para o problema. Algum método eficaz para reverter a malformação, não apenas o seu acompanhamento.
Ter o diagnóstico de malformação não significa aceitar essa malformação. Segue-se um período de questionamentos, de busca de novos diagnósticos. Sobre essa busca, assim se manifestou uma gestante:
“Fiz mais 15 ultra-sons, inclusive em clínicas particulares, mas todos acusaram o probleminha no neném.”
Passado o impacto e formalizado o diagnóstico, observa-se um período de choque, de impotência diante do quadro apresentado.
“Será que vou dar conta? Acho que não agüento passar por isto.”, desabafou outra mãe.
Nessa hora, é importante a aposta do analista. Acreditar que o sujeito sustenta e vai atravessar o problema, utilizando-se dos instrumentos psíquicos que ele tem disponíveis.
“Não há muito o que fazer, só esperar.”, lamenta uma gestante.
O movimento é fazer do esperar um momento de produção. Falar para construir uma história, dizer da angústia de se saber carregando alguma coisa que não é o bebê dos sonhos.
Não se trata de destituir as defesas ou abrir os olhos para a malformação. É escutar a paciente, bordejar o vazio que a experiência suscita, fazer circular a cadeia significante.
Os relatos são ricos, crus, pungentes. Na urgência, o sujeito do inconsciente aparece mais facilmente.
Culpa, medo, desespero vêm maciços, mais ou menos elaborados de acordo com o nível de simbolização de cada sujeito.
“Eu não dou sorte com menina mulher. Já perdi duas, uma tem problema grave e essa aqui nem sei o que vai ser.”, revela esta outra mãe.
3. Exames e consultas
Inicia-se então o pré-natal. Cordocenteses, anamneses, estudos de cariótipo, ultra-sons, consultas obstétricas, doppler, coletas de sangue, e outros exames são feitos com freqüência, especialmente no final da gestação.
Procedimentos dolorosos, invasivos, incômodos mas necessários no levantamento de dados quanto à origem e evolução da anomalia fetal.
Alguns casos surpreendem e a malformação involui, trazendo alívio para a mãe e toda a equipe. Ainda assim, ela continua em observação até o parto.
Mas, na grande maioria dos atendimentos, verifica-se a permanência ou o agravamento do quadro. Esse tempo propicia o surgimento de fantasias dessas mães, como se expressaram essas duas:
“Cada vez que venho aqui, a coisa fica pior.”
“Além de não ter cérebro, ele tem pezinho torto. Será que é porque eu fico muito tempo sentada?”
Buscar as respostas da malformação na forma de pensamentos mágicos e narcisistas é prática comum nessas mães. A responsabilidade na gravidez é delas, seja porque o parceiro as abandonou ou porque a simbiose mãe-filho não permite a entrada do pai neste momento.
“Esta cruz é só minha. Meu marido mão tem culpa nisso.”, declara outra mãe.
Sempre que possível, o parceiro é convidado a participar do atendimento psicológico. Dividir a cruz, compartilhar as ansiedades facilita na elaboração de todo este processo.
Deus é presença constante neste momento da vida das gestantes. Espera-se que ele cure, repare, salve a criança. É importante sustentar a fé. Não destruir as defesas erguidas para se defender de tamanha ameaça psíquica.
As questões médicas são redirecionadas ao médico. Ao psicólogo cabe ouvir, cuidando para não julgar, nem responder do lugar de quem tem pena e se comove com cada relato. Postura ética frente a um sujeito que odeia, ama, rejeita e acata o mesmo objeto: seja ele o “monstro, o ET,” expressão usada por uma gestante, seja o bebê que está se desenvolvendo.
“Como eu vou saber se ele ainda está vivo na minha barriga? E se ele morrer aqui dentro?”
“É estranho. Ele tem esses problemas, mas minha barriga cresce e eu sinto que ele mexe. Preferia que nem mexesse para não me dar ilusão.”
Segundo Maud Mannoni2, o filho dos sonhos tem missão de reparar o que na história da mãe foi julgado deficiente, sentido como falta, ou de prolongar aquilo a que ela renunciou. O nascimento de um filho vai ocupar um lugar nos seus sonhos perdidos: um sonho encarregado de preencher o que ficou vazio no seu próprio passado, uma imagem fantasmática que se sobrepõe à pessoa real de seu filho. Quanto a isso, assim se manifestaram duas mães:
“Esse bebê vinha para ensinar meu filho mais velho, que é surdo, a me chamar de mãe.”
“Eu queria tanto esse menininho! Seria o irmão que minha filha pediu.”
O ser real que surge, por sua enfermidade, vai renovar os traumatismos e as insatisfações anteriores e impedir posteriormente, no plano simbólico, a resolução para a mãe de seu próprio problema da castração.
O sonho, a expectativa, o ideal se tornou Anencefalia, Trissomia do 18, Hidrocefalia, Mielomeningocele ou outros tantos diagnósticos médicos que vêm dizer da impossibilidade de realização. Momento de luto, de redefinições.
A mãe aceita ser parasitada, ou antes habitada, por um ser que não tem existência senão de um corpo despedaçado3.
“Como vai ser a cabeça dele? Ele tem rosto?”, diz essa mãe.
O sentimento é de traição: ao invés de preparar um enxoval e o batizado, planeja-se um funeral. No lugar do bebê saudável, chega um malformado.
Algumas vezes, o bebê não recebe um nome enquanto não nascer. Nomear significa investir, criar um vínculo emocional que, muitas vezes, vai ser quebrado prematuramente.
Quanto mais próximo do termo, mais depressivas ficam as mães. Ter filhos malformados ou doentes significa castigo.
“Eu me sinto como se estivesse num corredor da morte, e sei que semana que vem, é o dia da sentença final. Vou receber minha punição.”
4. O Parto
O parto é um fato concreto, irreversível.
Significa a separação de dois corpos que viveram em profunda interação durante a gestação. A mãe adaptou-se ao estado de gravidez, incorporando o feto ao seu esquema corporal, acostumou-se com as diferenças de ritmo metabólico, hormonal e fisiológico.
Constitui-se como um momento crítico: situação de passagem de um estado a outro, processo abrupto que rapidamente introduz mudanças intensas. A proximidade da data prevista e a incapacidade de saber exatamente quem vai ser o obstetra, como e quando vai se desenrolar o trabalho de parto, contribuem para o aumento da ansiedade e insegurança.
Momento de muita angústia das mães, que além da ansiedade “normal” da situação de parto, sabem que esta pode ser a hora de trazer o bebê para a morte.
“Se eu pudesse, ficaria com ele na barriga para sempre, porque aqui eu sei que ele vive .”, confessa essa outra gestante.
A paciente recebe instrução de procurar o Hospital assim que sentir as primeiras dores, pois é lá que ela deve fazer o parto. Sempre há vagas para as pacientes da Medicina Fetal, mesmo em caso de lotação da maternidade.
Além da ciência da equipe do Hospital quanto à gravidade da gestação, este conta com equipamentos de ponta e uma equipe qualificada para o caso de uma cirurgia imediata no recém-nascido, ou qualquer outro procedimento de urgência.
A definição da via de parto depende do caso de cada paciente e das condições do feto. Em alguns casos, a propedêutica é induzir, em outros retardar ou esperar o curso natural
A psicóloga atende as paciente quando encaminhadas para a internação. Nesse momento, elas encontram-se mais resignadas. O que se espera é ter um parto tranqüilo e sem muitas dores. Vencer esta etapa, para depois pensar na próxima.
5. O pós-parto
“Ele nasceu vivo ou morto?”
“Ver ou não ver o bebê?”
“Vai para casa comigo?”
Questões que acompanharam as mães durante toda a gestação, respostas que variam de acordo com cada quadro.
Esta é a hora de maior incerteza, e a mais carregada de emoção. Há bebês que sobrevivem minutos, horas, dias e até meses, com seqüelas e deformidades.
Outros, são natimortos.
O médico incentiva as mães a verem e tocarem os nenens, respeitando a escolha e o tempo de cada uma.
Ver o corpo morto é fundamental no processo de elaboração de luto.
Há casos em que a mãe pega no colo, abraça, chora a morte ou a deformidade do seu bebê. Outras não querem nem ver.
“Eu tirei até foto dele enquanto ele viveu, para mostrar para minha família.”
Em caso de feto natimorto, ou morte posterior, é feita a autópsia mediante autorização dos pais.
Há casos em que a mãe recebe alta e leva o neném morto consigo, sem autorizar a autópsia. Permitir o procedimento é continuar sofrendo por uma criança que ainda ocupa o lugar de sonhos. Seria permitir atestar que o sonho acabou.
Muitos pais aprovam o procedimento frente à argumentação dos médicos – estudar in loco a malformação, levantar as causas, atestar as deformidades, prevenir complicações nas futuras gestações. Nos casos de negativa, a autópsia não se realiza. A opinião dos pais deve ser respeitada, mesmo que isso venha a comprometer os estudos médicos.
Outro comportamento observado é de mães que não querem ver a criança malformada ainda viva mas, depois da morte, sentem necessidade de ver e algumas vezes tocar. Depois de morta, a criança não oferece ameaça, não é mais um objeto no qual se pode investir amor e esperança.
Ainda no hospital, as mães são atendidas no leito, após as primeiras horas de recuperação. As reações variam de acordo com a estrutura de cada uma, mas percebe-se mais sentimentos de tristeza e abandono do que raiva. Pode-se inferir que há aceitação e conformação, devido ao acompanhamento recebido ao longo da gestação. As falas seguintes são uma evidência disso:
“Esta noite, sonhei com a senhora. Havia pessoas cantando músicas evangélicas e eu senti muita paz. Sei que eu e meu bebê estamos em paz.”
“Agora é ir para casa e cuidar do meu outro filho. A vida tem que continuar.”
6. Alta hospitalar
Após o tempo de recuperação do parto, as mães recebem alta do Hospital mas devem retornar para retirar os pontos, fazer avaliação com o obstetra e continuar com o atendimento psicológico.
A proposta é atender as pacientes até que elas se encontrem fortalecidas e reorganizadas. Saem bem do Hospital, agradecidas pelo tratamento e cuidado que receberam.
É importante fazer acompanhamento genético e de planejamento familiar nos casos de uma nova gravidez para aquelas cujo prognóstico não é de todo desfavorável. Conhecer os fatores de risco antes de engravidar novamente é de suma importância.
A possibilidade de uma nova gravidez, entretanto, normalmente é afastada. O temor de repetir a experiência ainda não elaborada, assusta.
Aqueles bebês que sobreviveram, continuam internados no Hospital até que recebam alta, tendo seus tratamentos continuados em casa ou em outra unidade hospitalar. São raros os casos em que o bebê sai do Hospital junto com a mãe e se desenvolve de forma normal. É o que confirma a fala de mães de bebês que sobreviveram:
“Hoje vou levar meu filho para casa. Ficamos aqui 4 meses, e agora vou montar um pequeno Hospital na minha casa e vou cuidar dele sozinha.”
“Têm quatro Vitória no berçário. Todas são nenens que sobreviveram.”
Sobrevivência de risco, cheia de altos e baixos, onde essas crianças passam a ser a coisa mais importante na vida de suas mães.
Cuidar de uma criança dependente pode ser a forma de se redimir das fantasias de culpa e incompetência.
Referências Bibliográficas
1. MALDONADO, M.T. Psicologia da gravidez. Petrópolis: Vozes, 1985.
2. MANNONI, M. A criança retardada e a mãe. Lisboa: Martins Fontes, 1988
3. MANNONI, M. Ídem
4. MALDONADO, M.T. Idem