quarta-feira, 30 de maio de 2012

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO DE MÃES DE FETOS MALFORMADOS



Mãe, maternidade, gravidez. Significantes que remetem à vida, continuida-
de, esperança, saúde. Com o que lidar quando o que se espera é um feto
malformado, incompatível com a vida?



É nesse lugar, onde a vida por vir é a quase espera da morte, que se desenvolve este artigo.

Trata-se de um  Centro de Medicina Fetal (CEMEFE/HC UFMG) que recebe gestantes, encaminhadas de outros centros de saúde (SUS, Hospitais do Interior do Estado e da Capital), cujos fetos têm problemas graves de desenvolvimento, das mais variadas causas, e a sentença final é quase sempre a mesma: pouca ou nenhuma chance de sobrevivência. Nos casos em que a criança sobrevive, normalmente, terá seqüelas.


Não se trata de uma gravidez que põe em risco a saúde física da gestante, e sim do feto. Este sim corre riscos. 

             

Ouvir as mães desses fetos é tarefa da Psicologia. É transformar essa situação de risco para o feto em discurso da mãe. Há o feto e o afeto. O analista vem permitir que o afeto solto seja direcionado e ganhe um novo significado. Fazer desabafar, esvaziar, verbalizar.            






A psicóloga tem contato com a gestante desde sua primeira consulta com o obstetra. Faz parte do protocolo ter pelo menos uma entrevista psicológica. A maioria das mães aceita esse acompanhamento, sentindo-se amparadas e ouvidas por alguém fora da família que as convida a falar e manifestar seus sentimentos frente à gravidez e suas questões de uma maneira geral.

            

Tal acompanhamento segue durante todo o seu trajeto no Hospital, e em caso de demanda, a psicóloga acompanha os procedimentos invasivos, a internação, a permanência no pré-parto, o parto e as primeiras horas de recuperação.

            

A seguir, a trajetória das pacientes desde o encaminhamento ao Centro até a alta hospitalar, dando maior ênfase ao acompanhamento psicológico. Considerando, nessa trajetória, apenas as gestantes cuja gravidez chega a termo. Há casos em que a perda do feto vem encurtar a permanência das mães no hospital.
   


1. As Pacientes

  

A gravidez é um período de transição que envolve a necessidade de reestruturação e reajustamento. Trata-se de mudanças físicas e emocionais profundas, onde há ambivalência de sentimentos. A gestante deseja a criança, ao mesmo tempo que a rejeita e a teme. 



Segundo Maldonado1, no caso de uma gravidez em que há riscos, as ansiedades e os medos da mãe são potencializados. Além das expectativas ditas normais relacionadas a esse período, somam-se sentimentos de punição e culpa por estar gerando uma criança malformada. Sentimentos de regressão e fragilidade também são observados.



Não se trata de desculpabilizar, mas desangustiar. É implicar e retificar. É fazer perceber qual a sua parte na história.



A mãe foi feita para dar vida, sendo sensível a qualquer atentado à vida que sai dela. Gerar um ser imperfeito é estar atentando contra sua própria natureza materna.   “Após 10 anos tentando engravidar, vem logo esse neném cheio de problemas?”



“Foi vacilo meu, mas depois que soube que estava grávida, eu até amei a criança, e agora, sei que ela vai morrer.”, são algumas das falas de mães atendidas pelo serviço.

  

Criar um ambiente onde elas podem ser ouvidas e acompanhadas é de suma importância.



O CEMEFE/HC UFMG recebe tais pacientes com fetos malformados, de todo o Estado de Minas Gerais. São mulheres entre 16 e 45 ou mais anos, de todas as raças, cores, credos e níveis socioculturais.

      

2. O encaminhamento


  
Os Postos de Saúde e demais Hospitais encaminham ao CEMEFE/HC UFMG as gestantes cujo ultra-som revelou algum tipo de malformação fetal. Diante desta realidade, duas mães assim se referiram ais fetos malformados:



 “O médico do posto disse que o problema é na cabecinha do neném.” 



“O ultra-som mostrou que tem água no pulmãozinho dele.”


  

Passar a fazer o pré-natal no Centro é sinal de alarme. Essas mães sabem que foram encaminhadas porque algo está errado com a gravidez.  Significa trocar de médico, estabelecer nova relação transferencial, confiar naquele que vem para falar da possibilidade de morte. 



É o próprio obstetra quem esclarece o quadro e dá o diagnóstico à paciente. Explica  os procedimentos clínicos que serão iniciados, sem falsas esperanças ou promessas. 



Por mais claras que sejam as explicações médicas, as pacientes esperam obter uma solução para o problema. Algum método eficaz para reverter a malformação, não apenas o seu acompanhamento.



Ter o diagnóstico de malformação não significa aceitar essa malformação. Segue-se um período de questionamentos, de busca de novos diagnósticos. Sobre essa busca, assim se manifestou uma gestante:

  

“Fiz mais 15 ultra-sons, inclusive em clínicas particulares, mas todos acusaram o probleminha no neném.”

            
Passado o impacto e formalizado o diagnóstico, observa-se um período de choque, de impotência diante do quadro apresentado.
  
“Será que vou dar conta? Acho que não agüento  passar por isto.”, desabafou outra mãe.
  
Nessa hora, é importante a aposta do analista. Acreditar que o sujeito sustenta e  vai atravessar o problema, utilizando-se dos instrumentos psíquicos que ele tem disponíveis. 
  
“Não há muito o que fazer, só esperar.”, lamenta uma gestante.
  
O movimento é fazer do esperar um momento de produção. Falar para construir uma história, dizer da angústia de se saber carregando alguma coisa que não é o bebê dos sonhos. 
      
Não se trata de destituir as defesas ou abrir os olhos para a malformação. É escutar a paciente, bordejar o vazio que a experiência suscita, fazer circular a cadeia significante.
  
Os relatos são ricos, crus, pungentes. Na urgência, o sujeito do inconsciente aparece mais facilmente.
      
Culpa, medo, desespero vêm maciços, mais ou menos elaborados de acordo com o nível de simbolização de cada sujeito.
  
“Eu não dou sorte com menina mulher. Já perdi duas, uma tem problema grave e essa aqui nem sei o que vai ser.”, revela esta outra mãe.
   

3. Exames e consultas

  

Inicia-se então o pré-natal. Cordocenteses, anamneses, estudos de cariótipo, ultra-sons, consultas obstétricas, doppler, coletas de sangue, e outros  exames são feitos com freqüência, especialmente no final da gestação.



Procedimentos dolorosos, invasivos, incômodos mas necessários no levantamento de dados quanto à origem e evolução da anomalia fetal.



Alguns casos surpreendem e a malformação involui, trazendo alívio para a mãe e toda a equipe. Ainda assim, ela continua em observação até o parto.



Mas, na grande maioria dos atendimentos, verifica-se a permanência ou o agravamento do quadro. Esse tempo propicia o surgimento de fantasias dessas mães, como se expressaram essas duas: 

  

“Cada vez que venho aqui, a coisa fica pior.”



“Além de não ter cérebro, ele tem pezinho torto. Será que é porque eu fico muito tempo sentada?”

  

Buscar as respostas da malformação na forma de pensamentos mágicos e narcisistas é prática comum nessas mães. A responsabilidade na gravidez é delas, seja porque o parceiro as abandonou  ou porque a simbiose mãe-filho não permite a entrada do pai neste momento.

  
“Esta cruz é só minha. Meu marido mão tem culpa nisso.”, declara outra mãe.
  
Sempre que possível, o parceiro é convidado a participar do atendimento psicológico. Dividir a cruz, compartilhar as ansiedades facilita na elaboração de todo este processo. 



Deus é presença constante neste momento da vida das gestantes. Espera-se que ele cure, repare, salve a criança. É importante sustentar a fé. Não destruir as defesas erguidas para se defender de tamanha ameaça psíquica.



As questões médicas são redirecionadas ao médico. Ao psicólogo cabe ouvir, cuidando para não julgar, nem responder do lugar de quem tem pena e se comove com cada relato. Postura ética frente a um sujeito que odeia, ama, rejeita e acata o mesmo objeto: seja ele o “monstro, o ET,” expressão usada por uma gestante, seja o bebê que está se desenvolvendo.


Confusão de sentimentos e situações. Se mexe, está vivo. Mas, vivo enquanto dentro da barriga. Vivo enquanto dependente da mãe. Morto depois que sair dela. Isto é confirmado nas seguintes falas: 
  
“Como eu vou saber se ele ainda está vivo na minha barriga? E se ele morrer aqui dentro?”
     
“É estranho. Ele tem esses problemas, mas minha barriga cresce e eu sinto que ele mexe. Preferia que nem mexesse para não me dar ilusão.”

Segundo Maud Mannoni2, o filho dos sonhos tem missão de reparar o que na história da mãe foi julgado deficiente, sentido como falta, ou de prolongar aquilo a que ela renunciou. O nascimento de um filho vai ocupar um lugar nos seus sonhos perdidos: um sonho encarregado de preencher o que ficou vazio no seu próprio passado, uma imagem fantasmática que se sobrepõe à pessoa real de seu filho. Quanto a isso, assim se manifestaram duas mães: 
  
“Esse bebê vinha para ensinar meu filho mais velho, que é surdo, a me chamar de mãe.”
“Eu queria tanto esse menininho! Seria o irmão que minha filha pediu.”
  
O ser real que surge, por sua enfermidade, vai renovar os traumatismos e as insatisfações anteriores e impedir posteriormente, no plano simbólico, a resolução para a mãe de seu próprio problema da castração.

O sonho, a expectativa, o ideal se tornou Anencefalia, Trissomia do 18, Hidrocefalia, Mielomeningocele ou outros tantos diagnósticos médicos que vêm dizer da impossibilidade de realização. Momento de luto, de redefinições.

A mãe aceita ser parasitada, ou antes habitada, por um ser que não tem existência senão de um corpo despedaçado3.
  
“Como vai ser a cabeça dele? Ele tem rosto?”, diz essa mãe.
  
O sentimento é de traição: ao invés de preparar um enxoval e o batizado, planeja-se um funeral.  No lugar do bebê saudável, chega um malformado.

Algumas vezes, o bebê não recebe um nome enquanto não nascer. Nomear significa investir, criar um vínculo emocional que, muitas vezes, vai ser quebrado prematuramente. 

Quanto mais próximo do termo, mais depressivas ficam as mães. Ter filhos malformados ou doentes significa castigo. 
  
“Eu me sinto como se estivesse num corredor da morte, e sei que semana que vem, é o dia da sentença final. Vou receber minha punição.”
   
4. O Parto     
  
O parto é um fato concreto, irreversível. 



Significa a separação de dois corpos que viveram em profunda interação durante a gestação. A mãe adaptou-se ao estado de gravidez, incorporando o feto ao seu esquema corporal, acostumou-se com as diferenças de ritmo metabólico, hormonal e fisiológico. 



Constitui-se como um momento crítico: situação de passagem de um estado a outro, processo abrupto que rapidamente introduz mudanças intensas. A proximidade da data prevista e a incapacidade de saber exatamente quem vai ser o obstetra, como e quando vai se desenrolar o trabalho de parto, contribuem para o aumento da ansiedade e insegurança.


Momento de muita angústia das mães, que além da ansiedade “normal” da situação de parto, sabem que esta pode ser a hora de trazer o bebê para a morte.

  
“Se eu pudesse, ficaria com ele na barriga para sempre, porque aqui eu sei que ele vive .”, confessa essa outra gestante.
  
A paciente recebe instrução de procurar o Hospital assim que sentir as primeiras dores, pois é lá que ela deve fazer o parto. Sempre há vagas para as pacientes da Medicina Fetal, mesmo em caso de lotação da maternidade. 

Além da ciência da equipe do Hospital quanto à gravidade da gestação, este conta com equipamentos de ponta e uma equipe qualificada para o caso de uma cirurgia imediata no recém-nascido, ou qualquer outro procedimento de urgência.



A definição da via de parto depende do caso de cada paciente e das condições do feto. Em alguns casos, a propedêutica é induzir, em outros retardar ou esperar o curso natural 



A psicóloga atende as paciente quando encaminhadas para a internação. Nesse momento, elas  encontram-se mais resignadas. O que se espera é ter um parto tranqüilo e sem muitas dores. Vencer esta etapa, para depois pensar na próxima.

   


5. O pós-parto

   

“Ele nasceu vivo ou morto?”

“Ver ou não ver o bebê?”

“Vai para casa comigo?”
  
Questões que acompanharam as mães durante toda a gestação, respostas que variam de acordo com cada quadro.



Esta é a hora de maior incerteza, e a mais carregada de emoção. Há bebês que sobrevivem minutos, horas, dias e até meses, com seqüelas e deformidades.



Outros, são natimortos.



O médico incentiva as mães a verem e tocarem os nenens, respeitando a escolha e o tempo de cada uma. 



Ver o corpo morto é fundamental no processo de elaboração de luto. 

     

Há casos em que a mãe pega no colo, abraça, chora a morte ou a deformidade do seu bebê. Outras não querem nem ver.

      
“Eu tirei até foto dele enquanto ele viveu, para mostrar para minha família.”
  
Em caso de feto natimorto, ou morte posterior, é feita a autópsia mediante autorização dos pais. 
      
Há casos em que  a mãe recebe alta e leva o neném morto consigo, sem autorizar a autópsia. Permitir o procedimento é continuar sofrendo por uma criança que ainda ocupa o lugar de sonhos. Seria permitir atestar que o sonho acabou.



Muitos pais aprovam o procedimento frente à argumentação dos médicos – estudar in loco a malformação, levantar as causas, atestar as deformidades, prevenir complicações nas futuras gestações. Nos casos de negativa, a autópsia não se realiza. A opinião dos pais deve ser respeitada, mesmo que isso venha a comprometer os estudos médicos.



Outro comportamento observado é de mães que não querem ver a criança malformada ainda viva mas, depois da morte, sentem necessidade de ver e algumas vezes tocar.  Depois de morta, a criança não oferece ameaça, não é mais um objeto no qual se pode investir amor e esperança. 

      

Ainda no hospital, as mães são atendidas no leito, após as primeiras horas de recuperação. As reações variam de acordo com a estrutura de cada uma, mas percebe-se mais sentimentos de tristeza e abandono do que raiva. Pode-se inferir que há aceitação e conformação, devido ao acompanhamento recebido ao longo da gestação. As falas seguintes são uma evidência disso: 

  
“Esta noite, sonhei com a senhora. Havia pessoas cantando músicas evangélicas e eu senti muita paz. Sei que eu e meu bebê estamos em paz.”
      

“Agora é ir para casa e cuidar do meu outro filho. A vida tem que continuar.”
   


6. Alta hospitalar     


Após o tempo de recuperação do parto, as mães recebem alta do Hospital mas devem retornar para retirar os pontos, fazer avaliação com o obstetra e continuar com o atendimento psicológico.



A proposta é atender as pacientes até que elas se encontrem fortalecidas e reorganizadas. Saem bem do Hospital, agradecidas pelo tratamento e cuidado que receberam.



É importante fazer acompanhamento genético e de planejamento familiar nos casos de uma nova gravidez para aquelas cujo prognóstico não é de todo desfavorável. Conhecer os fatores de risco antes de engravidar novamente é de suma importância. 



A possibilidade de uma nova gravidez, entretanto, normalmente é afastada. O temor de repetir a experiência ainda não elaborada, assusta. 



Aqueles bebês que sobreviveram, continuam internados no Hospital até que recebam alta, tendo seus tratamentos continuados em casa ou em outra unidade hospitalar. São raros os casos em que o bebê sai do Hospital junto com a mãe e se desenvolve de forma normal. É o que confirma a fala de mães de bebês que sobreviveram: 

  

“Hoje vou levar meu filho para casa. Ficamos aqui 4 meses, e agora vou montar um pequeno Hospital na minha casa e vou cuidar dele sozinha.”



“Têm quatro Vitória no berçário. Todas são nenens que sobreviveram.”

  

Sobrevivência de risco, cheia de altos e baixos, onde essas crianças passam a ser a coisa mais importante na vida de suas mães. 


Cuidar de uma criança dependente pode ser a forma de se redimir das fantasias de culpa e incompetência.                 



Referências Bibliográficas 


1. MALDONADO, M.T. Psicologia da gravidez. Petrópolis: Vozes, 1985. 



2.  MANNONI, M. A criança retardada e a mãe. Lisboa: Martins Fontes, 1988  



3. MANNONI, M. Ídem  



4. MALDONADO, M.T. Idem





terça-feira, 29 de maio de 2012

ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO DE TRANSPLANTADOS






O Atendimento Psicológico Inicial

Existe o acompanhamento do trabalho de Psicologia no Hospital do Rim e Hipertensão de
São Paulo. Em função da dinâmica e estrutura de atendimento aos pacientes em ambulatório e principalmente pelo reduzido número de psicólogos no Hospital do Rim, ainda não está sendo possível atender o paciente no período que antecede o transplante, embora o ideal fosse atendê-lo neste momento para acompanhá-lo e ajudar a família durante o processo de exames para identificação da compatibilidade. Uma coisa é ser compatível, outra é estar disponível para ser doador. Às vezes, descobre-se que um membro da família é compatível e essa pessoa não tem a liberdade de não querer doar. Existe uma expectativa da família e do próprio receptor em relação ao possível doador. Este é um período permeado de muita expectativa tanto por parte do receptor quanto por parte dos membros da família envolvidos nesse processo. Nesse período muitas questões afetivas e emocionais são mobilizadas tanto em quem está precisando do órgão, quanto em quem está envolvido como possível doador. Brigas, desafetos e ressentimentos aparecem para dificultar a doação/recepção. Por exemplo o possível doador pode ser justamente aquele com o qual o receptor teve brigas ou desavenças e na hora de receber um órgão dessa pessoa, essas questões podem surgir. Muitas vezes o paciente acredita que o órgão dessa pessoa vem carregado com as características dela, e se forem ruins tem receio de receber esse órgão. Essas questões raramente aparecem para o médico que está envolvido com questões práticas do transplante, mas aparecem num atendimento psicológico e muitas vezes são essas fantasias que podem contribuir para um processo de rejeição, porque o paciente acha que aquele rim é ruim. No Hospital do Rim o atendimento psicológico ao paciente se inicia quando ele e o doador se internam e dura o tempo necessário durante a hospitalização. 



A Expectativa do Receptor

O paciente quando chega ao transplante, já é um paciente crônico que está em tratamento há tempo, e as possibilidades de "cura" foram se esgotando . Para o paciente a indicação do transplante é vista como uma grande perspectiva de cura, existe muita expectativa, um novo horizonte se abre. A expectativa do doente é voltar a ser o que era antes de adoecer, a expectativa do transplante traz sempre uma sempre magia. Por outro lado, quando há a possibilidade de doador vivo, como no caso do rim, o paciente também fica muito incomodado em pedir para alguém ser doador. Em geral, quando a família ainda está verificando a compatibilidade, o paciente vive um momento de expectativa, aguardando que alguém se ofereça, nunca se sente na liberdade de pedir "parte do corpo do outro" para si. Ele espera que alguém se disponha a doar e há famílias em que nem todos os membros se dispõem a doar. Muitas vezes durante o atendimento o paciente comenta que alguém poderia ter doado e não doou, fala do seu ressentimento e mágoa mas não fala para a família. Para muitas pessoas existe o medo de tirar o órgão e ficar mais frágil por causa disso. Muitas vezes o doador é identificado pela compatibilidade e cria-se sobre ele uma pressão meio velada da família para que doe.E não conseguindo lidar com essa pressão, ele doa mesmo sem querer. Neste caso se o receptor vier a perder este órgão, ele irá sentir muitas vezes culpado, como se tivesse lesado o outro, não tivesse sabido aproveitar o órgão que recebeu. Isso é um sofrimento muito grande para o paciente suportar juntamente com o fato de ter perdido o órgão e precisar retornar ao tratamento anterior. Por outro lado, já se observou relatos de familiares cobrando esta perda, o que é pior ainda. Algo do tipo "você perdeu o órgão que seu irmão te deu". Estas questões devem ser muito bem trabalhadas para evitar estes conflitos que interferem e dificultam o curso do tratamento. 



As Fantasias do doador vivo/cadáver

 A situação de transplante sempre mobiliza muitas fantasias. Quando é doador vivo, existe a fantasia de que o órgão venha carregado com as características (boas ou más) do doador. Se o doador é uma pessoa afetiva, amorosa, boa,correta, o receptor acredita que esse órgão é bom, mas se a pessoa é rude, brava, criou problemas ou brigas familiares, a crença do paciente muitas vezes é de que não é bom. Ocorre geralmente a ideia que se recebeu no órgão do outro algumas características da pessoa que doou. Quando o órgão vem de doador cadáver,como este é um desconhecido, isto favorece a que o paciente crie muitas fantasias sobre quem era a pessoa de quem recebeu o órgão. Como o paciente muitas vezes tem acesso a dados do doador, ouve-se várias vezes o paciente verbalizando que o rim é bom porque o doador era jovem. Acreditam geralmente que é melhor, pelo órgão ser mais novo, portanto mais saudável e com mais chance de dar certo.Se o doador é mais velho e por acaso o transplante começa a dar problema, o paciente atribui a causa a um rim mais usado, gasto. Depende o que o órgão representa para cada pessoa, cada um cria uma expectativa, uma fantasia, que pode facilitar ou dificultar o curso do processo.



O Contexto Familiar

Quando a pessoa adoece, esse processo já implica numa restrição de sua vida. Então se ela tinha um papel na família, ao adoecer, muda seu papel e todo mundo se sente afetado com isso. Isto significa que todos os membros vão ter que assumir uma nova conduta, podendo em alguns casos haver inversão de papéis. Por exemplo, se o pai é o provedor da família e adoece, às vezes acontece da mulher ter que trabalhar e o pai assumir as responsabilidades da casa. Além da perda da saúde, da autonomia, ainda tem a perda do papel profissional. A família sofre mudanças muito significativas neste sentido. No caso de um renal crônico, ele é alguém que não pode estar participando de muitas atividades familiares, nem pode comer o mesmo que os outros da família e isso vai muitas vezes segregando-o, porque a vida social fica comprometida. Ele é limitado pela restrição alimentar, líquida e até física. E no caso do diabético em diálise ainda é pior. O importante é a família dar apoio, incentivar o paciente e o tratamento, se reorganizar para abrir o espaço para o paciente se ausentar de seu papel. Porém, só faz isto quem tem estrutura, porque muitas vezes é difícil para a família dar esse apoio. O ideal seria o paciente e a família,ao saber da necessidade do transplante, buscar um suporte através da orientação psicológica. 



A Relação Médico/Paciente

Essa é uma relação muito complicada. O médico deve estar esclarecendo e orientando todas as possibilidades, tirando dúvidas do paciente e da família. Acreditando na chance do tratamento ou do transplante,ele ( médico) luta por isso e quer que o paciente colabore. Muitas vezes o fato do paciente ter medo, receio e não querer fazer o transplante ou nem sempre colaborar como o médico gostaria cria dificuldades para a relação, porque vai contra ao que ele se propõe fazer. Esta relação é básica, não só na situação de transplante, mas em qualquer problema de saúde que se tenha. Seria muito bom se os médicos pudessem perceber que há uma esfera de uma psicológica, emocional, e solicitar que haja atendimento psicológico para se trabalhar em conjunto. Muito poucas vezes eles estão atentos a esta questão. Não dá para separar o físico do emocional. Tem que ser um trabalho conjunto porque ajuda o médico e o paciente. O médico fica mais tranqüilo quando sabe que o psicólogo está cuidando de aspectos que ele não consegue lidar, mesmo porque ele não é uma pessoa preparada para isto. A repercussão desse trabalho é positiva no pós-transplante. Até mesmo para lidar com a perda, a rejeição. O chegar ao transplante descortina para o paciente a possibilidade de mudar a vida, conquistar uma vida mais saudável, recuperar os projetos de vida e, de repente, perder isso é o mesmo que colocar o pé no céu e despencar. 



A Relação Médico-Paciente Pós-Transplante

 Se o transplante der certo, o médico é o máximo para o paciente, foi o responsável por isso. O paciente transplantado não é um paciente que se desliga do médico após o transplante; pelo contrário, é alguém a quem ficará vinculado para o resto da vida, pois quaisquer intercorrências de saúde deverá ser acompanhada pelo médico que realizou o transplante ou sua equipe.Mas se o transplante não der certo, o paciente pode achar que foi por causa do médico. Muitas vezes, a complicação na relação pode ocorrer pelo fato do paciente achar que o médico não o acolheu, não o tratou, nem o entendeu. Quando não se tem confiança não se pode esperar nada. Muitos pacientes podem vir a se tornar pacientes psicologicamente crônicos. Eles têm uma afecção crônica, mas também existe uma demanda psicológica, porque de alguma maneira têm ganhos com o adoecimento: a atenção ou carinho. Esses pacientes parecem, muitas vezes, que não podem ficar saudáveis porque isso significa uma grande perda para eles, mas isso é muito subjetivo, depende muito do processo de cada um, o que está ganhando e o que está perdendo. Se o paciente faz o transplante e é bem sucedido, deve estar resgatando coisas da vida dele que perdeu e isso geralmente é muito bom para o paciente .Se não consegue fazer isto pode ser porque o mundo externo seja tão ameaçador que ele prefere ficar protegido na doença. Isto vai depender dos recursos psicológicos de cada um. 



A Rejeição

Existem fatores psicológicos que contribuem para a rejeição. Se a pessoa recebe um órgão e começa a criar uma fantasia ruim a respeito dele, isso de alguma maneira pode predispor negativamente o paciente, ao receber aquele órgão. Tudo o que vai acontecendo de errado acaba sendo atribuído aquilo. Vai criando uma crença de que aquilo é algo ruim para ele. Claro que não é tudo psicológico, às vezes, acontece uma infecção, mas existe uma pré-disposição para até possibilitar que isso aconteça. Como o paciente lida psicologicamente com a rejeição? Se o indivíduo é um paciente crônico e existe a possibilidade de reverter essa condição, toda expectativa será depositada no transplante. Se o paciente vive essa "liberdade" conseguida pelo transplante e perde isso, ele sabe o significado dessa perda. Isso é muito pesado. A elaboração de uma perda é muito difícil, é um luto enorme. 



A Depressão Pós-Transplante

O que percebe-se é que com os pacientes que são atendidos não chega a ser uma depressão, é uma tristeza. Essa tristeza pode ser devido à ansiedade, o medo do transplante não dar certo ou pode ser mobilizada por outros fatores: o afastamento da família ou como vai se posicionar quando voltar para casa. Para o doente, o medo e a tristeza são um sentimento comum, pois adoecer é sempre uma situação de perda. 



Uma Mensagem

Seria muito legal que todas as pessoas no processo de adoecimento e principalmente no processo de transplante pudessem contar com o atendimento psicológico. Ajuda o paciente, o médico e a família. É uma situação em que a dimensão psicológica está muito presente o tempo todo. É uma situação delicada e as equipes de transplante deveriam contar com esta ajuda. Uma boa preparação favorece uma melhor recuperação e adaptação do paciente.