sábado, 11 de fevereiro de 2012

PSICOLOGIA: REFLEXÃO E CRÍTICA

O fenômeno psicológico como objeto de estudo transdisciplinar



Resumo Fundamentando-se no pressuposto teórico de que o processo de subjetivação individual ocorre em um ambiente cultural circunscrito, produzido pelas relações sociais dos indivíduos de uma dada sociedade, argumenta-se sobre a intercomplementariedade dos conhecimentos da Sociologia, Antropologia e Psicologia. Contudo, as culturas e as formas de relação social têm uma história. Uma história que esclarece as condições de desenvolvimento dos significados das formas de relação social, econômicas e políticas. Sendo assim, todo contexto cultural, político, social e econômico no qual se constrói a subjetividade individual, para ser compreendido em qualquer dos seus momentos, requer a sua reconstrução histórica.
Palavras-chave: Subjetividade; transdisciplinaridade; epistemologia.


Matéria
Para o estudo dos fenômenos psicológicos considera-se necessário recorrer a conhecimentos das áreas de Sociologia, Antropologia e História. Contudo, o esforço reflexivo para a compreensão do especificamente psicológico não pode ser reduzido ao sociologismo, ao antropologismo ou ao historicismo. Entretanto, os conhecimentos das áreas de Ciências Humanas são fundamentais para circunscrever a manifestação individual do comportamento, em contextos concretos.
De acordo com Wertsch (1995), "o objetivo fundamental da pesquisa sociocultural é o de elucidar o relacionamento entre o funcionamento mental humano com contextos culturais, institucionais e históricos". Parte, então, da suposição de que a compreensão dos fenômenos mentais e das ações humanas requer a integração de "idéias e métodos normalmente parcelados em disciplinas isoladas como a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Lingüística e a História.". Sendo assim, a concepção de fenômeno psicológico, que norteia essa reflexão, fundamenta-se no paradigma de que a construção da subjetividade se processa do social para o individual (Vygotsky, 1984).


Entende-se, portanto, que a subjetividade humana, a partir da atividade do indivíduo, agente e auto-construtor de si mesmo, se dá no contexto cultural de relações sociais nas quais está inserido e que estas relações produzidas pelos indivíduos dependem de práticas histórico-culturais desenvolvidas pela sociedade (Leontiev, 1978). Nesse caso, o indivíduo nasce em uma sociedade na qual relações sociais fundamentadas em uma cultura, historicamente construída pelo homem, o envolve. Esta cultura influenciará sobre as suas formas de pensar, de sentir e de agir. Contudo, a sua atividade individual, no âmbito dessa sociedade, fará com que se aproprie, reformule e reconstrua compreensões de fenômenos presentes na cultura. A partir da sua atividade, portanto, o ser humano constrói a sua subjetividade que é influenciada pelas práticas culturais, as quais ele mesmo mantém, transforma ou elimina. Em resumo, como afirma Cole (1988): "os seres humanos vivem em um ambiente criado pela acumulação de interações mediadas pela cultura/instrumentos das gerações anteriores", porém "é na constituição mútua dos objetivos e significados da atividade prática que se forma a estrutura dos processos psicológicos especificamente humanos."

O processo de socialização do indivíduo tem sido tradicionalmente tratado pela Sociologia, ou seja, em nível da sociedade, as relações sociais são produzidas, mantidas e modificadas historicamente, circunscrevendo a dinâmica de uma determinada organização social (Heller, 1987). Sendo assim, a Sociologia busca a compreensão do funcionamento macro-social, supondo que o mesmo depende de uma subjetividade coletiva, que no mínimo, é expressa em relações humanas diádicas, hierarquizando-se para grupos, organizações, instituições, pois em última instância compõem e concretizam uma sociedade em sua plenitude.
Heller (1985) propõe um paradigma que pretende explicar o processo de socialização e que seja unificador dos paradigmas marxistas do trabalho e da produção, mas não idêntico a nenhum dos dois.

A estrutura de objetivação é esse novo paradigma, que consiste em "um complexo que compreende o núcleo da vida social, presente em todas as sociedades, mas completamente variável quanto ao conteúdo particular a que se refere" .Pode ser chamado, ainda, de esfera das objetivações em si, uma estrutura de objetivações a qual "todos os seres humanos têm que se apropriar para sobreviver em um dado ambiente cultural."

A esfera das objetivações em si constitui-se de três componentes: o uso dos objetos feitos pelo homem, a observação dos costumes definidos culturalmente e o uso da linguagem ordinária. Como estes componentes se complementam, o domínio de um deles depende do domínio dos outros dois, só podem ser apropriados juntos, o que justifica, segundo Heller (1985), falar em uma estrutura de objetivação. Nessa esfera de objetivação, conforme Heller (1985), produz-se a intersubjetividade, mas como é apropriada individualmente permite alternativas mais ou menos singulares. Pode, portanto, ser considerada a base de todas as ações humanas e produz uma forma de comunicação em dado contexto cultural e histórico.

Na verdade, o que Heller (1985) propõe é um paradigma que dê conta de todo o processo de socialização do indivíduo desde o momento em que é "atirado", nasce, em um contexto cultural circunscrito, no qual para ser considerado adulto deve passar por um processo de apropriação em si e, então, poder se objetivar enquanto indivíduo. Heller (1985) apresenta uma argumentação consistente sobre o processo de socialização do indivíduo a partir do seu paradigma.

O mundo e seu contexto cultural e social
refletidos nos seus quartos.
Pode-se dizer que o espaço vital de todo indivíduo é a vida cotidiana, na qual desde o nascimento o indivíduo precisa apropriar-se de normas e regras que encontra no contexto cultural em que nasce. A apropriação das normas e regras culturais, de acordo com Heller (1985), a partir da aprendizagem do uso de objetos, do seguimento dos costumes e da linguagem, processos que ocorrem na esfera das objetivações em si, permitem-lhe objetivar-se enquanto indivíduo culturalmente maduro.


O indivíduo culturalmente maduro é, então, aquele que a partir da apropriação e do seguimento das normas e regras culturais desenvolve, ao mesmo tempo, capacidades que lhe permitem agir no âmbito da cultura, através do discernimento do que é bom ou mau, bem ou mal, falso ou verdadeiro. Na verdade, na esfera de objetivações em si o indivíduo desenvolve a razão prática, faculdade que lhe permite discriminar de acordo com uma hierarquia de categorias de valor, sendo que o bem vem sempre em primeiro lugar. Em resumo, nessa esfera o indivíduo desenvolve o bom senso.
Com base no paradigma das objetivações concretas, Heller (1985) estabelece a teoria da vida cotidiana e da racionalidade.

Considera que a esfera das objetivações em si é um universal empírico da vida social em geral e a espinha dorsal da vida cotidiana contemporânea em particular, pois "engloba e explica a intersubjetividade do nosso conhecimento, ação e comunicação". Afirma ainda, que a apropriação das objetivações da esfera das objetivações em si é a pré-condição, não apenas para a sobrevivência individual em dada sociedade, mas também, para a sobrevivência da sociedade. No entanto, o seguimento de normas e regras da esfera de objetivações em si precisam suprir a vida humana com significado. É pois em outra esfera que isto ocorre, na esfera de objetivações para si.

A esfera de objetivações para si consiste de várias objetivações que têm algo em comum, principalmente fornecer à vida humana um significado. Essa esfera, a partir da absorção do excedente cultural da experiência subjetiva, confere significado às normas e regras heterogêneas da esfera de objetivações em si, estabelecendo assim, a sua unidade. As objetivações para si são: as religiões, as artes, as ciências e as filosofias. Todas estas objetivações fornecem à vida humana significado, através de uma visão de mundo significativa. O contato com estas objetivações permite ao indivíduo, a partir da razão prática ou racionalidade da razão, desenvolver a razão teórica ou racionalidade do intelecto.

A racionalidade do intelecto, segundo Heller (1985), "é a competência em observar uma ou várias normas, normas essas que incorporam igualmente o ‘aspecto’ positivo de uma ou outra categoria de orientação de valor, em pelo menos uma objetivação para si no período histórico em questão". A racionalidade do intelecto permite ao indivíduo transcender o pensamento teórico cotidiano, próprio da esfera de objetivações em si, e desenvolver a crítica e a reflexão através dos contatos com as visões de mundo significativas das objetivações para si.

Socióloga Agnes Heller
Uma ordem de objetivações realizadas totalmente nas instituições constitui a esfera das objetivações para e em si, pois as instituições são caracterizadas por um sistema relativamente homogêneo de normas e regras (Heller, 1985). As instituições são subsistemas da estrutura social. Assim é que a estrutura social é o conglomerado de tais subsistemas (as instituições), que expressa a identidade social, produzida e reproduzida através do apoio mútuo. A estrutura social nada mais é que o conjunto de instituições, as quais são mutuamente interconectadas e mutuamente sustentadas (Heller, 1985).

Enquanto o ser humano como todo é o sujeito da esfera de objetivações em si, nunca pode sê-lo da esfera de objetivações para e em si, pois cada forma institucionalizada de ação requer uma educação ou treino especial para desenvolver e ativar várias capacidades humanas, incluindo aquelas que permitem suspender as atividades heterogêneas dentro do quadro de uma instituição (Heller, 1985).

Com base nessas proposições, Heller (1985) apresenta uma teoria da socialização do indivíduo, cujo destinatário certamente o sujeito individual, possibilitando explicar o desenvolvimento da sua racionalidade através da apropriação das objetivações em si pela sua ação, desenvolvendo a racionalidade da razão (razão prática) que lhe permite, apesar de não ser um a priori, apropriar-se das objetivações para si, questionar as normas e regras, dar-lhes ou não sentido, e ter uma vida com significado, desenvolvendo assim a racionalidade do intelecto (razão teórica). A partir daí pode se submeter às objetivações para e em si (as instituições), onde ao apropriar tais objetivações, deve seguir as suas normas e regras homogêneas (razão prática) e suspender normas e regras da vida cotidiana que não permeiam as instituições (razão teórica). Dessa forma, resgatando o indivíduo como ponto de partida e destinatário da teoria, (Heller, 1985) constrói um paradigma, o das objetivações concretas, que possibilita a compreensão e a crítica da sociedade em todas as suas esferas, que na realidade é a vida cotidiana, a qual inclui a esfera da produção.

As proposições de Heller (1985), anteriormente explicitadas, indicam dois pontos importantes e que corroboram teoricamente o que defende a teoria da atividade: a) a subjetividade individual constrói-se do coletivo para o individual e b) a arbitrariedade dos limites divisórios das áreas do conhecimento que buscam a compreensão do comportamento humano.

Ressaltados esses pontos, fica claro que não se pode compreender a subjetivação individual sem considerar o processo de construção da subjetivação coletiva e vice-versa. Não existe, portanto, a possibilidade quer seja para a Sociologia, preocupada com os processos de socialização, quer seja para a Psicologia, preocupada com os processos de subjetivação individual, de construírem conhecimentos isoladamente. Na verdade, as duas ciências tratam do mesmo processo, enfocando momentos diferentes dele na relação de reciprocidade entre indivíduo e sociedade.

A construção social do indivíduo, de acordo com Vygotsky (1984), Leontiev (1978) e Heller (1985), requer a apropriação e a transformação do ambiente cultural, processos que interessam especificamente à Antropologia. Ao se considerar que o processo de subjetivação individual ocorre em um ambiente cultural circunscrito, produzido pelas relações sociais dos indivíduos de uma dada sociedade, reconhece-se a intercomplementariedade dos conhecimentos da Sociologia, Antropologia e Psicologia. Fica claro, portanto, que os processos individuais de subjetivação ocorrem em contextos culturais definidos, os quais são influenciados e influenciam o desenvolvimento, a apropriação e a transformação de práticas produzidas nas relações sociais.
Todavia, a consideração da cultura como importante para a compreensão da subjetividade individual requer algumas explicitações. A primeira, refere-se ao papel que a cultura desempenha na construção da subjetividade e, a segunda, o que se entende por cultura. Estas duas questões são complexas e estão no cerne das discussões acerca do próprio objeto da Antropologia - a cultura - e da relação indivíduo/contexto cultural. Por isso, o que se pretende nas discussões seguintes é apenas situar a compreensão que orientará este trabalho.
Na Psicologia, cultura foi primeiramente enfatizada nos estudos realizados pelos pesquisadores da denominada Psicologia transcultural (Rogoff & Chavajay, 1995). A Psicologia transcultural nos anos 70, de acordo com esses autores, analisava como as tarefas cognitivas que eram realizadas nos Estados Unidos e na Europa ocorreriam entre pessoas de outras culturas. Na verdade, procedimentos para avaliar habilidades cognitivas, desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa, eram aplicados em populações da África, Ásia e América Latina.
Supunha-se que as tarefas cognitivas propostas eram de tal abrangência, que as variações observadas em diferentes grupos culturais seriam decorrentes da influência da cultura na qual o grupo analisado estava inserido. Contudo, uma importante conclusão produzida por estas pesquisas foi a de que os indivíduos poderiam, às vezes, ter um desempenho insatisfatório em tais tarefas, mas na sua vida cotidiana serem extremamente competentes (Rogoff & Morelli, 1989). O problema era que as tarefas cognitivas utilizadas estavam sendo consideradas como universais e a cultura como variável independente. De acordo com Brislin (1983), esse foi o emprego mais freqüente para cultura nos estudos da pesquisa transcultural.

A partir dos anos 90, conforme Valsiner (1995), as Ciências Humanas têm considerado mais enfaticamente a cultura como um aspecto relevante da Psicologia humana. Apesar da cultura ter sido colocada, muitas vezes, à margem do estudo dos fenômenos psicológicos, mais recentemente, diversos grupos acadêmicos têm procurado integrá-la à Psicologia. Esta nova compreensão, como afirma Valsiner (1995), é a de que "cultura não é uma variável ‘independente’ (ou ‘dependente’), mas algo que denota a organização sistemática da natureza histórica e semiótica dos processos psicológicos humanos em suas manifestações amplas e variadas". Influenciados pela teoria de Vygotsky (1984) de que para a compreensão do pensamento individual, necessita-se entender o contexto social e histórico-cultural no qual ocorre, os psicólogos, afirmam Rogoff e Chavajay (1995), têm mudado a sua perspectiva no sentido de "tratar a cultura e a cognição como processos dinâmicos que não podem ser separados e a analisar esses processos mais como localizados que gerais."

Assume-se, desse modo, como premissa, consoante com as abordagens sócio-culturais, que os níveis individual, social e cultural são inseparáveis. Assim, o desenvolvimento humano e o ambiente cultural estão intrinsecamente relacionados. Cultura, nesse caso, é uma parte integrante do fenômeno psicológico, ou como afirmam Gergen, Gulerce, Lock, e Misra (1996), uma Psicologia, focalizada culturalmente, considera a cultura como tendo um papel constitutivo e como uma parte integral do desenvolvimento humano.
Contexto Social
Histórico-Cultural
Contudo, é preciso explicitar o que está sendo compreendido como cultura, enquanto integrante do fenômeno psicológico. Cultura tem sido considerada como a parte do ambiente feita pelo homem - os artefatos culturais (Rogoff & Morelli, 1989) - ou como os "modos organizados de comportamentos nos domínios tecnológicos, econômicos, religiosos, políticos, familiares (...), os quais ocorrem regularmente dentro de uma população" (Rohner, 1984) ou como um sistema de significados incorporados em símbolos historicamente transmitidos (Geertz, 1989).

Para Wassmann (1995), cultura nada mais é que um conjunto de significados cujo papel é o de fornecer aos seus membros a mediação para a redução do caos. Cultura, enquanto conjunto de significados compartilhados por um grupo social, tem sido a compreensão dominante entre os psicólogos. Entende-se dessa forma que a construção de significados é a própria construção do conhecimento social. O conhecimento, como afirma Blanco (1995), pode ser algo que é socialmente distribuído em um grupo humano, o que poderia ser denominado de cultura. Por outro lado, o conhecimento acontece também dentro do indivíduo, o qual aparece na ação, na qual "o tipo de conhecimento envolvido na interface entre o indivíduo e o seu grupo, necessariamente tem um caráter comunicativo, discursivo" (Blanco, 1995). Os significados sociais se desenvolvem através do nivelamento das restrições no uso comunicativo dos signos. Entretanto, a operação de criação dos signos sociais envolve não apenas a resignação, mas também a resistência, ou seja, neste processo operam tanto o consenso como o contra-senso (Blanco, 1995).

Moodie, Marková e Plichtová (1995) discordam dessa compreensão de cultura. De acordo com essas autoras, cultura deve ser definida apenas considerando os seus atributos necessários, que são: o fenômeno simbólico compartilhado (ambiente do pensamento) e as práticas sociais compartilhadas. A sua argumentação é de que o nível simbólico (as representações sociais) são essenciais para a cultura, porque são trabalhos da mente, mas não são práticas sociais compartilhadas e atividades compartilhadas.

Nesta mesma direção, seguindo a posição de Triandis (1972), Matsumoto, Kudoh e Takeuchi (1996) afirmam que é importante distinguir entre aspectos objetivos e subjetivos da cultura. Os aspectos subjetivos da cultura são psicológicos, fazem parte de nós e refletem a cultura, tais como: valores, atitudes, crenças ou opiniões. Os aspectos objetivos são as instituições, os artefatos físicos, ou seja, os produtos culturais.
Codificação de Símbolos Próprios
De acordo com Toomela (1996), a definição de internalização assume que uma cultura é informação socialmente compartilhada e codificada em símbolos. Isto porque "sem os símbolos a mediação não seria possível". Se a apropriação ou a transformação da cultura é integrante da construção da subjetividade do indivíduo, ao se considerar cultura como objetos externos ou artefatos culturais surge um problema crucial, pois "é impossível internalizar instrumentos externos, o que pode ser internalizado é o significado deles."
Nesse ponto, parece claro que o relacionamento entre as pessoas, em uma dada organização social, depende da compreensão que se tem dessas relações. Essa compreensão possibilita o intercâmbio entre as pessoas na medida em que visões de mundo e significados podem ser compartilhados. Um indivíduo ao nascer em um grupo de determinado ambiente cultural precisa apropriar-se da complexa rede de significações que permeia aquele grupo para tornar-se um membro ativo nele. No seu processo de internalização dos significados dos símbolos culturais, em função das suas características e história pessoal, ele pode apropriar-se, reformular ou rejeitar certas interpretações da realidade.

Nessa direção, pode-se distinguir que o ambiente cultural de uma sociedade é composto por artefatos culturais, costumes, rituais, comportamentos, códigos, linguagens, entre outros produtos culturais externos. Estes são os reveladores de uma cultura, pois o desenvolvimento de cada um deles ocorreu porque foi compreendido como necessário naquela organização social. A permanência deles ocorre enquanto são significativos. Mesmo assim cada grupo cultural poderá dar significados diferentes para produtos externos semelhantes.

A dinâmica da transmissão cultural e as formas de apropriação dela estão diretamente relacionadas com a construção da subjetividade individual. Na verdade, o que o indivíduo que está aprendendo a se expressar e ser aceito em uma cultura faz: é identificar, compreender e internalizar os significados dos símbolos que a referida cultura lhe apresenta. Aprender a utilizar um instrumento ou a comportar-se em rituais requer, além dos movimentos motores, a compreensão e a internalização do significado daquelas ações. Neste sentido todos os produtos culturais são símbolos que revelam a interpretação que os indivíduos têm acerca deles na sua relação social. Compreende-se, assim, cultura como um construto que se constitui de uma rede de significados socialmente construídos e compartilhados entre um grupo de pessoas, o que possibilita o intercâmbio social e é expressa na relação dessas pessoas com os símbolos daquela cultura. Contudo, as culturas e as formas de relação social têm uma história. Uma história que esclarece as condições de desenvolvimento dos significados das formas de relação social, econômicas e políticas. Sendo assim, todo contexto cultural, político, social e econômico no qual se constrói a subjetividade individual, para ser compreendido em qualquer dos seus momentos, requer a sua reconstrução histórica.

A História, a partir de 1929, passou a buscar uma maior integração com as demais Ciências Humanas. Ao desenvolver uma crítica à história fatual, que desconsiderava a longa duração, estava focalizada principalmente na política e desvinculada das estruturas, de acordo com (1995), Lucien Febvre e Marc Bloch fundaram os Annales d’Histoire Économique et Sociale, que passou a difundir uma nova forma de pensar e de fazer a pesquisa histórica, lançando os fundamentos do que hoje é denominado de história das mentalidades.

A crítica dos fundadores dos Annales, conforme Goff (1995), centrava-se na história política. Segundo eles, além de ser uma história-narrativa era, ainda, uma história de acontecimentos e fatual. Desse modo, lidava apenas com as aparências e mascarava "o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas ocultas em que é preciso ir detectá-lo, analisá-lo e explicá-lo."
Esta nova história introduz duas perspectivas muito fecundas, que foram propostas pelos seus pioneiros: a longa duração e as estruturas. A primeira, refere-se ao estudo de longa duração. Argumentava-se que "a história caminha mais ou menos depressa, porém as forças profundas da história só atuam e se deixam apreender no tempo longo" (Goff, 1995. Permanências e mudanças, importantes para a compreensão histórica, não podem ser detectadas no curto prazo. A segunda, considera que é preciso identificar e analisar as estruturas. As estruturas são o que permanece ao longo do tempo, envolvido por mudanças (Goff, 1995).
O conceito de estrutura, proposto por Braudel (1992), gerou muitas críticas. Segundo ele, devido ao fato de confundirem-no com o que é chamado estrutura nas teorias estruturalistas, um construto subjetivo. De acordo com Braudel, para o historiador as estruturas são coisas bem reais e as define como: "o que na massa da sociedade, resiste ao tempo, perdura, escapa das vicissitudes, sobrevive com obstinação e sucesso." Braudel explica ainda,
"que estrutura não é imobilidade rigorosa. Ela só se parece imóvel em relação a tudo o que, em torno dela, se move, evolui mais ou menos depressa. Mas ela se desgasta, durando. Ela se apouca. É inclusive sujeita a rupturas, mas afastadíssimas umas das outras no tempo e que, por mais importantes que sejam, nunca dizem respeito a toda arquitetura de uma sociedade. Nem tudo se quebra de um só golpe." (Braudel, 1992)
Com a perspectiva de uma história total, considerando aspectos sociais, econômicos, demográficos, antropológicos e psicológicos, a nova história, de acordo com Ariès (1995), "interessava-se pela massa da sociedade, que permanecia distante dos poderes, por aqueles que lhes eram submetidos". Os historiadores, então, começaram a deixar os gabinetes ministeriais e as câmaras parlamentares, segundo Burguière (1995), para "irem observar ‘ao vivo’ os grupos sociais e as estruturas econômicas", procurando abordar cada sociedade com maior profundidade.

A construção da nova história, que buscava a história total, iniciou-se como história social e econômica, sendo que, conforme Ariès (1995), a sua "totalidade era obtida (...) na e pela economia" (p.156). A partir de 1945, a história econômica passou a ser privilegiada, mantendo, no entanto, o objetivo de construir "uma história coletiva de ambição humanista, que possibilitava alcançar a vida das massas, a multidão dos pequenos, dos obscuros." (Ariès, 1995)
Siastema das Mentalidades
A partir de análises de registros demográficos, os historiadores perceberam que as análises estatísticas, relativas a longos períodos, revelavam modelos de comportamentos, que de outro modo não poderiam ser detectados (Ariès, 1995). Perceberam, ainda, "que entre o comportamento demográfico e o nível dos recursos havia como que um sistema óptico que modificava a imagem real" (Ariès, 1995): era o sistema das mentalidades. Um sistema que revelava a compreensão que as pessoas tinham acerca da sua realidade e que poderia ser apreendido na análise do processo histórico. Tais reflexões possibilitaram um avanço na análise do processo histórico, pois passou-se a observar que subjacentes aos fatos havia mentalidades que eram diferentes tanto em relação aos vários momentos da história de uma sociedade, como nas diversas culturas.

Desloca-se, então, o foco de análise para as mentalidades de cada época. Contudo, reconheceu-se que a apreensão de tais diferenças remete à comparação entre duas mentalidades. Uma conhecida, ou ingenuamente conhecida, como diz Ariès (1995), que é a referência do historiador. A outra, "enigmática, discutível, terra incógnita, que o historiador se propõe descobrir". Sendo assim, conclui Ariès (1995), "descobrir é primeiro compreender uma diferença". A diferença, enquanto inteligência da particularidade, difere uma cultura da nossa e assegura-lhe uma originalidade.

Nessa perspectiva, a pesquisa histórica preocupa-se com o cotidiano popular, com os mecanismos da formação educativa e da informação, com a percepção diferencial dos valores pelos vários grupos sociais e a subjetividade humana deixa de ser considerada como invariável, mas como um aspecto cambiante do contexto histórico-social global (Cardoso & Brignoli, 1983).

Apesar dos historiadores considerarem importantes os aspectos psicológicos para a explicação histórica, a psicologia pouco tem contribuído. Para Cardoso e Brignoli (1983), isto se deve ao fato da Psicologia até agora ter sido incapaz de vincular o individual ao coletivo. A verdade é que o esforço teórico da Psicologia na articulação da reciprocidade indivíduo e sociedade é muito recente, pois teóricos, como Mead (1934) e Vygotsky (1984), que levantaram tais questões na Psicologia, já na primeira metade deste século, só recentemente têm sido resgatados, o que têm exigido dos pesquisadores uma nova abordagem, conforme tem sido defendida neste trabalho. É preciso destacar, no entanto, que nos últimos anos, há um esforço bastante produtivo por parte de Demause (1982), que tem apresentado estudos sistemáticos, articulando a história da criança com análises psicológicas.

Ao longo de toda essa discussão o que fica evidenciado é que as diferentes áreas do conhecimento sobre o comportamento humano são complementares.

Portanto, é necessário que a pesquisa psicológica seja orientada por uma abordagem epistemológica que recorra a outras áreas do conhecimento para o esclarecimento do seu objeto específico de estudo. Só assim a Psicologia aperfeiçoará o conhecimento que produz e contribuirá para o aperfeiçoamento dos conhecimentos das outras áreas humanas.

Para os pesquisadores da história das mentalidades (Ariès, 1995; Braudel, 1992; Burguière, 1995; Goff, 1995) é imprescindível a elucidação da subjetividade própria "das distintas classes, grupos sócio-econômicos e outros, de determinada sociedade: hábitos de pensamento, idéias somente transmitidas e admitidas, concepções sobre espaço, tempo, natureza, sociedade, sobre o ‘além’ etc." (Cardoso & Brignoli, 1983), contribuições que se espera a Psicologia possa oferecer, não só à História, mas também e, principalmente, à Sociologia e à Antropologia.

Referências
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Sobre o autor
Antônio Marcos Chaves é Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal da Bahia,
-Wertsch, J. V. (1995). Sociocultural research in the copyright age. Culture & Psychology, 1, 81-102.
Antônio Carlos Chaves

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