quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

RACISMO: O QUE A PSICOLOGIA TEM A VER COM ISSO?

Entrevista com o antropólogo Júlio Tavares, professor do Programa de Pós- Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).


1) Em sua opinião, qual é o papel da Psicologia frente ao racismo?

O papel da Psicologia é procurar mapear os estereótipos e as representações e, junto com a Antropologia, descrevê-los, no sentido de fornecer evidências para esses mecanismos de dissimulação e de exclusão que existem no Brasil. É um trabalho de arqueologia no imaginário nacional, seja através da clinica, seja através de pesquisas descritivas. Qualquer área pode ajudar bastante nisso, porque, afinal, o racismo ataca em múltiplas frentes e só um contra-ataque também em múltiplas frentes pode cerceá-lo.


2) Você acha que tem havido um trabalho satisfatório nesse sentido, tanto da Psicologia quanto da Antropologia?


Não, tem havido um trabalho muito fraco. Acho que mais recentemente tem havido alguns trabalhos na psiquiatria, com a Neusa Santos, mas nada muito sistemático. Na Psicologia essa questão não ganha cunho acadêmico. Se bem que eu sei de um professor na Bahia que tem um trabalho sobre representação e estereótipos.

3) Isso seria fruto daquele pensamento que diz que no Brasil não existe racismo?

Esse é mais do que um pensamento, já é uma atitude cristalizada. Além de ser um comportamento cristalizado, é também uma espécie de ponto de vista. Existe toda uma blindagem cognitiva. O acesso a determinadas falas que caminham no encontro do desaparelhamento do sujeito em relação a essas atitudes é sempre muito bem-vindo. O racismo se cristalizou não só de forma institucional, mas está muito arraigado dentro do imaginário dos indivíduos e no nacional. É muito difícil admitir. Não admitir tem a ver com a forma sólida e definitiva com que determinadas formas de ver se consolidaram.


4) Você disse que, segundo a Lílian Schwartz, há alguns setores dominados pelos brancos, como a medicina. Você acha que por esse meio acadêmico também ser um meio em que dominam brancos, o fato de essas pessoas não serem atingidas pelo racismo influencia na falta de pesquisas sobre o tema?


Exato. Tem duas coisas: o fato de não terem vivido a experiência e também uma cultura de supremacia, uma cultura muito arrogante e totalitária que se consolidou no Brasil. Então, nem se pensa na possibilidade de respeitar a dor do outro nesse aspecto. Se essa dor fosse colocada em relevância, já melhoraríamos muito. Mas ela não é considerada como tal, porque se não existe o racismo, não existe a dor do racismo. Existe um silogismo por detrás desse jogo de máscaras não-racista que vai muito além da aparência. Acho que o ataque maior é na estrutura e não na aparência.


5) Isso teria relação com uma dissimulação do racismo?

Dissimulação é uma palavra muito significativa nesse caso. Dissimulação no Brasil é muito mais do que esconder, camuflar, é uma política comportamental que faz parte da informalidade. O que é essa informalidade do brasileiro? É uma parte da dissimulação. Essa pessoalidade é uma forma de dissimular o peso institucional. A dissimulação é muito mais do que um conceito classificador, no Brasil ela é uma forma de engatilhar uma série de práticas de discriminação que são muito comuns no cotidiano brasileiro. É a forma que reitera a validade desses estereótipos e dessas formas de exclusão.


6) Que tipo de enfrentamento seria cabível para uma discriminação desse tipo, dissimulada e não tão visível?


A dissimulação é, como eu disse, a forma que engatilha os estereótipos e a discriminação, o chamado racismo cordial. Mas quem vive o racismo e outras formas de exclusão desenvolveu mecanismos de percepção, uma capacidade de leitura e de antecipação dessas situações muito grande, até por uma necessidade de sobrevivência. Então, ele é dissimulado, mas quem sofre o vê. Só quem não vê é o conjunto que não sofre e que poderia se solidarizar.


7) Negros e brancos têm papéis diferentes nesse processo?

Claro. Cabe ao negro cada vez mais evitar qualquer tipo de submissão e de dissimulação dessa dor. É uma dissimulação generalizada. Tem todo um efeito de contra-poder – você dissimula a dor ao mesmo tempo em que dissimula a agressão. Acho muito importante o papel dos brancos que se aliam a esse tipo de confronto, de denúncia, de também estarem atentos para aprender com o explorado, o colonizado, de que maneira essa dor se manifesta e até dela tirar proveito. Tem também que atacar outros brancos que façam uso dessa arma. Há uma aproximação entre as práticas do branco e do negro. A diferença é que o negro sente essa dor e o branco vai se solidarizar com essa dor.

Zumbi, Herói Negro Brasileiro
8) Qual a importância de trazer à tona os heróis negros da História nacional?


A importância é quebrar essa vacuidade no que diz respeito à representação de sujeitos que operaram na construção desse país. O imaginário nacional não é povoado por símbolos que transfigurem a imagem do negro. Esse projeto tem uma missão pedagógica, que é a de construir essas imagens no imaginário nacional. Construir o lugar da importância de uma população que tem sido considerada não tão fundamental na construção do país. Mostrar que não só através do escravo o país foi construído, mas também através das letras, das artes, da ciência, da filosofia, da tecnologia, e o negro está presente nesses campos também como operador desse processo.


9) Qual foi a primeira vez que você se deparou com o racismo?


Não lembro a primeira vez, mas creio que fui muito menos atingido do que muitos outros que têm um fenótipo mais acentuado que o meu, uma taxa de melanina maior. Isso eu vejo, por exemplo, por boa parte da minha família, que é muito misturada. Eu sempre percebia quando saía com primos meus, mais “melanínicos”, determinados olhares. Talvez a minha consciência para o racismo tenha se dado por essa minha sensibilidade para coisas não-verbais. E é esse o lugar por onde essa dissimulação se realiza, essa forma tida “cordial” do racismo. Ela passa muito pelo olhar – pela interdição através do olhar, através do gesto. A vocação que os olhares e os gestos têm de desdém, de desqualificação, de indiferença, de humilhação. Ele é muito mais manifesto nesse aspecto, que através de atos e formulações não verbais, ele atinge diretamente na alma. Talvez seja muito mais doloroso. Você não tem um lugar onde está escrito “proibida a entrada de negros”, mas tem um olhar que, ao você entrar num lugar, o desqualifica, o humilha, o coloca indiferente, te obriga a sair daquele lugar, pela energia daquele olhar. Isso é mais corriqueiro e isso eu vivi, até aprender a levantar a cabeça para isso. Demora um tempo, porque essa pedagogia não é institucional, é dada pela própria violência ou pela transmissão de outros. Isso que eu chamo de forma não verbal do racismo são todas essas figurações muito violentas da alteridade. No Brasil, ela é assim, tem o famoso olhar de humilhação, de desdém, da indiferença. É uma forma extremamente pesada. Isso você vai ter no trabalho, no restaurante, na condução que você pega. Tem aquele racismo explícito, mas esse não-verbal é muito mais corriqueiro, é o coloquial. O racismo explícito já exige uma tal dose de ousadia que não é compatível com a covardia do brasileiro no que diz respeito a essa questão.


10) Como antropólogo, seu trabalho já começa tendo como objeto essa questão?


Exato. Minha tese de doutorado é uma discussão entre categorias do pensamento que são usadas no cotidiano como ferramentas cognitivas para a produção de identidade e resistência. Uso a idéia de ginga e a idéia de “cool”, faço uma análise dessas categorias e vejo como elas atuam no cotidiano, através do trabalho de campo no Halem, em Nova Iorque, e na Mangueira. Então eu vejo como através da fala e como a enunciação em determinadas categorias, como a idéia de ginga e a de “cool”, para os americanos, vem acompanhada de uma série de gestos, de projetos, de horizontes, atitudes e comportamentos e como elas têm uma matriz performática muito forte que também está aliada, no campo da política, a uma performance articulada à resistência de ambas as experiências negras. Nos EUA, a idéia de “cool” está ligada ao jazz e, no Brasil, a idéia de ginga está ligada à capoeira. Então, eu construo toda uma cadeia semântica que articula essas duas operações lingüísticas que são absolutamente corriqueiras, não somente enunciadas por negros, mas também por brancos, em ambos os países, e como isso tem uma diferenciação no uso de falantes que estejam diretamente ligados a essas performances e à comunidade. Eu tenho uma preocupação com essa dimensão performática da comunicação, seja lingüística ou cotidiana. Ou seja, o aspecto performático da interação social e como através dele o racismo se manifesta, a exclusão e o estereótipo. E como através das interações entre os sujeitos se dão as relações de poder.

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