“A psicologia quer aproveitar suas competências e se tornar acessível ao povo que está nas ruas, junto aos povos da terra, ao lado da homo- afetividade, das crianças em situação de risco, com as populações em restrição de liberdade, com as pessoas aprisionadas; quer fortalecer a luta antimanicomial, discutir mídia e subjetividade para lutar pela democratização das comunicações, falar de informática e humanidade e almejar um mundo melhor sem grades...”
Jornal do CFP – Ano XIX n. 85 – outubro 2006
Advinda da ONU, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada em resposta às atrocidades cometidas nos campos de concentração da Europa. Dela advêm, juntamente, o caráter universal em sua concepção de sujeito. Mas como pensarmos os Direitos Humanos em seu âmbito internacional sem sermos prescritivos e invasores? Como contemplar as diferenças culturais não só em diferentes continentes, mas até mesmo em um só país ou nação? Além disso, como não cairmos na cilada do relativismo cultural absoluto? Como estabelecermos direitos humanos respeitando as heranças culturais? A concepção de sujeito universal permeou durante longos tempos os diferentes campos do saber, e se pensarmos nos Direitos Humanos, a situação não era tão diferente. Podemos, como exemplo disso, pensar como se deu a construção do estado Moderno que, tem por base os princípios de igualdade de direitos para todos...
“Como se todos nós tivéssemos as mesmas chances, ou oportunidades, para a mobilidade social e como se todos nós fôssemos iguais, ou seja, como se entre nós, homens e mulheres, negros e brancos, não existisse nenhuma diferença social, cultural, econômica, racial ou sexual”.
Neusa Maria Guareschi, presidente do CRP-RS
A Depressão não é uma doença dos tempos |
As práticas da Psicologia como ciência, por muito tempo voltadas para a concepção universal do sujeito, hoje, dentro e fora do sistema conselhos, têm sido discutidas a respeito de sua relativização, pois, se não pensarmos as questões das diferenças culturais, políticas, sexuais, sociais, étnicas, religiosas ou geográficas, isto é, a diversidade de possibilidades de expressão do sujeito, tomamos a Psicologia numa perspectiva essencialista e biológica que pode ser perpetuada através dos tempos. Assim, hoje tentamos partir de uma concepção individual e universal para a valorização das diferenças sociais, culturais, econômicas, étnicas, sexuais, entre tantas outras que compõem a diversidade de nosso campos de atuação. E não precisamos ir muito longe para abranger contrastes continentais. Num país como o Brasil, onde temos tamanha diversidade de heranças étnicas e condições socioeconômicas, é imprescindível a valorização da diferença.
Entendemos que as identidades se constroem através das marcas da diferença, por meios que vão desde sistemas simbólicos de diferenciação a situações de exclusão social. Nesse contexto, não contemplar as diferenças torna-se uma prática selvagem. Dessa forma, no momento em que a psicologia toma o sujeito com uma concepção essencialista, ela nega suas diferenças e o entende, o classifica de acordo com os conceitos teóricos e normas sociais universais e, é assim, também com essa concepção que ela se integra ao trabalho junto aos Direitos Humanos, aqui já não mais tão humanas.
Concepção Privatista de Sujeito
“Se a democracia é reconhecida como um valor, seus princípios universalizantes passam a funcionar como um afronte à incorporação de novos direitos, de culturas diferenciadas, de necessidades alternativas. A esfera pública, quando inclui, coloca as diferenças entre parênteses e, tratando todos como iguais, discrimina os menos poderosos e os diferentes”.
Pinto (1999).
Pura auto-psicologia dos tempos modernos. |
A psicologia favorece uma perspectiva privatista que por muitos anos permeia sua forma de estudar e conceber o ser humano, principalmente no que diz respeito à prática clínica ou profissional que se encontra alijada do coletivo, em uma torre de marfim. Como pode um indivíduo se constituir unicamente em uma forma “individual”? Separado da cultura e da sociedade? Como podemos pensar o psiquismo a partir deste ser que se constrói exclusivamente no âmbito privado? Essas perguntas devem persistir dentro da psicologia para que possamos trazê-la para a lógica de concepção de sujeito constituído no público, na cultura, no campo social. Nesse sentido, a psicologia tem uma importância fundamental para problematizar e instigar nossas raízes individuais e sociais. Coimbra (2002), ao questionar as características que fundamentam as práticas psicológicas, salienta que “as práticas psicológicas se voltam par ao interior do sujeito, onde só interessa o que se refere ao auto conhecimento, desqualificando os espaços públicos e excluindo a responsabilidade das questões políticas e públicas frente aos conflitos que emergem do psiquismo e do chamado interior do sujeito”. A mesma autora nos aponta que muitas problemáticas como a violência doméstica são compreendidas e analisadas como constituídas no campo individual, familiar, privado, o que se torna, de certa forma, reducionista.
Concepção de Saúde Mental - Desafios da Psicologia
É desafio da Psicologia criar caminhos no sentido de partirmos da concepção reducionista de saúde como ausência de doença para pensarmos a saúde mental como um conceito complexo, num contexto de promoção de formas de vida e de ser, e que englobem a dimensão do sujeito como cidadão tanto na esfera pública como na esfera privada; de uma face normativa e prescritiva da concepção de doença mental para uma abordagem contemplando os direitos básicos do cidadão, como direito ao trabalho, à moradia, à segurança e à saúde.
O Lugar da Psicologia
Angústia |
A Avaliação Psicológica é uma função tradicional, predominante, construída historicamente, para o Psicólogo, no sistema prisional e judiciário. Essa avaliação existe pela expectativa de prognóstico. O objetivo normalmente é medir a probabilidade de reincidência de crimes por parte desses sujeitos encarcerados, de modo que, com a avaliação psicológica, a partir da análise das características de personalidade, se tenha um prognóstico que permita ou não uma liberdade condicional, por exemplo. Porém, a partir disto, é imperioso discutirmos o lugar em que a Psicologia se colocou e se deixou colocar. Muitas vezes o psicólogo se recusa a fazer essa avaliação prognostica, por acreditar não ser esta uma prática consciente, mas os juízes exigem juridicamente que ela seja realizada, obrigando os profissionais a exercerem um papel que não deveria existir. Assim, é desconcertante notarmos como a Psicologia parte do lugar de se discutir “como fazer o que é solicitado, o que é demandado”, mas e não do lugar de discutir “por quê que se tem que fazer isso; quem disse que a Psicologia tem que fazer isso?”, mantendo-se subjugada.
A Psicologia, ao longo de sua prática, foi se “judicializando”, entrando em consenso com as necessidades da justiça, colaborando para as demandas desse Sistema abandonando alguns aspectos éticos importantes. Ex.: Na análise da penalidade de adolescentes, o psicólogo deve apresentar seus laudos ao juiz na presença do adolescente referido. Onde está a humanidade nisto? Em nosso país, há 40 anos colocamo-nos numa posição de entre áreas, para dar conta das questões que nenhuma outra ciência respondia, para tentar prever o comportamento e realizar o estudo da mente, das reações e das sensações, trabalhando para uma sociedade de controle (durante a ditadura), na colaboração para a ação de normatizar, organizar, regular o que não estava dentro do “esperado”. Entretanto, hoje podemos estudar as formas de sairmos desta posição para assumirmos nossa responsabilidade social e científica. É preciso que os psicólogos tenham uma organização política sólida, que reivindiquem seus direitos; que deixem de aplicar essa avaliação “prognostica” no Sistema Prisional; que trabalhem a partir do enfoque do SUS, na concepção de Saúde Pública, pensando em quê eles pode promover a vida àquele sujeito que nela padece. É preciso o engajamento e participação de nossos profissionais para que um futuro consciente e humano possa se estabelecer.
“Uma reposta como esta à angústia da população por mais segurança, por uma melhor qualidade de vida somente pode ser considerada paliativa e performática. Além de tudo, demagógica, pois são muitos os argumentos e realidades que demonstram a ineficiência de ações punitivas e repressoras no combate à violência”.
Artigo do CRPRS, posicionando-se contra a redução da Maioridade Penal Sobre o Diálogo com o Legislativo
“Tivemos alterações, Emendas, Resoluções, mas não é nada fácil”.
Neusa Maria Guareschi
Conversamos com a Presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, a psicóloga Neusa Maria Guareschi, que nos explica o quão difícil é o diálogo entre o Conselho Federal de Psicologia e o Poder Legislativo. Sabemos das dificuldades em serem aprovadas leis, emendas e resoluções, e nos é conhecido também que a Psicologia vem travando uma árdua batalha para defender seus direitos. Assim, vemos a importância de estarmos cientes do caminho que precisamos trilhar para realizar pequenas mudanças em nosso país. Segundo Guareschi nos relata:
1.O debate do conselho de Psicologia deve ser aprovado numa PAF do Sistema Conselhos. As PAFs são assembléias que acontecem todos os anos, onde se discutem questões administrativas e financeiras do Sistema Conselhos.
2.Quando o debate é aprovado, se faz uma resolução do Conselho Federal, onde ele determina um grupo para formular uma solicitação a algum senador ou deputado para uma emenda, um projeto de lei, etc.
3.Correm mais alguns anos para ser ou não votada e aprovada a solicitação.
4.Também pode ocorrer o caminho inverso. A partir de projetos de lei já aprovados o Conselho Federal aprova questões de acordo com esses projetos de lei, como no caso da questão dos homossexuais, por exemplo.
Considerações Finais
Descobertas da ciência e da psicologia modernas, sobre o pensamento. |
Depende de nós pensarmos que a prática da Psicologia não precisa ser sempre a mesma, e sim que ela precisa ser reinventada, questionada, criada, transformada, mudada, dependendo de uma análise, de um contexto, de um processo de significação do que se vive. É um grande progresso que o Sistema Conselhos venha propondo a discussão de diversos temas que atravessam a prática da psicologia no Brasil, mas sabemos que muito ainda precisa ser desenvolvido. É fundamental que participemos das discussões e que levantemos a bandeira da valorização não só das diferenças, ma de nossa própria profissão. Além disso, é de extrema importância que a valorizemos dentro de nós, para que possamos exigir de nós mesmos o que ainda não conseguimos construir.
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