Biografia e idéias de Voltaire – . O autor (1694-1778) nasceu em Paris. Seu nome verdadeiro era François Marie Arouet. Seu pai era tabelião e possuía pequena fortuna. Sua mãe tinha origem aristocrática. Ela morreu depois do parto. François foi franzino durante a infância e teve saúde fraca durante toda a vida. Tinha um irmão mais velho, Arnaud, que entrou para um culto herético jansenista. François revelou talento literário e sensibilidade poética logo na infância. Ele comprou livros com a herança de uma senhora que havia visto nele futuro cultural. Com esses livros, e com a tutela de um abade, começou sua educação. O abade lhe mostrou o ceticismo e as orações religiosas. O pai de François queria um futuro prático para o filho. Achava que a literatura não rendia dinheiro nem prestígio. Com o intuito de tornar o filho advogado do rei, coloca-o num colégio jesuíta. Os jesuítas eram padres com formação militar, que usavam para difundir o evangelho no mundo todo. Eram membros da Companhia de Jesus, que havia sido fundada por Inácio de Loyola. Os jesuítas ensinaram a Voltaire a dialética, arte de dialogar progressivamente, para provar as coisas. Ele discutia teologia com os professores, que reconheciam Voltaire como um “rapaz de talento mas patife notável”.
Seu padrinho o introduziu numa vida desregrada. Conheceu escritores, poetas e cortesãos. Ficava na rua até tarde, divertindo-se com fanfarrões epicuristas e voluptuosos. Seu pai, homem sério, não viu com bons olhos as atividades do filho. Manda-o para a casa de um parente, para mantê-lo quase preso. Mas o parente, quando o conhece, gosta tanto dele que lhe dá liberdade.
Quando François termina o colégio, seu pai arranja para que se torne pajém do marquês de Châteauneut. Parte em missão diplomática com esse embaixador para Haya, Holanda. Logo que chega lá encontra uma moça: Olympe Runoyer, a Pimpette. François teve encontros amorosos com a moça e queria que ela fosse morar com ele na França. O caso foi descoberto. François escrevia cartas apaixonadas, dizendo:”não há dúvida de que irei amá-la para sempre.” Mandam-o de volta para a casa de seu pai.
Compõe uma ode a Luís XIII, com a qual participa de um concurso, que não vence. Luís XIV morre, e seu filho é muito jovem para ser rei. O poder ficou com um regente. Sem um governador legítimo,a vida em Paris corria sem controle e François corria com ela.
François começa a ficar conhecido por ser brilhante, imprudente e turbulento. É malicioso e tem os olhos vivos e perpicazes. Vira amante de Susanne de Livry, faz versos galantes e poemas cômicos. Ele aspira ser o grande trágico da época, e não são poucas as suas tragédias. Suas obras somadas dão noventa e nove volumes. É um espírito versátil, dono de uma cultura notável, que o ajudava a ser fecundo. Em 1715 escreve a peça Édipo e o poema Henríada, um épico sobre Henrique IV. Sua fama aumenta e todas as coisas espirituosas e maliciosas são atribuídas a ele, inclusive algumas anedotas, contra o regente que governava, duque de Órleans. As anedotas falavam que o regente conspirava para usurpar o trono. Em 1717, o regente manda-o para a Bastilha, a prisão parisiense. Na Bastilha adota o nome de Voltaire. Depois de quase um ano de prisão, o regente o soltou. A tragédia que escrevera, Édipo, é produzida em 1718, e fica em cartaz quarenta e cinco noites seguidas, um recorde para a época. Se enconta com Fontenelle. Com um lucro de 4000 francos da peça, Voltaire faz investimentos financeiros, empresta dinheiro, e financia o tráfico de escravos, que era um negócio rentável. Assim , fez render seu dinheiro e pode viver com folga.
Então, uma briga com o duque de Sully, cavaleiro de Rohden, o obriga a ir para o exílio. O nobre não aceita seu desafio para um duelo, e dispõe de meios para prendê-lo de novo. O cavaleiro mandou seus homens baterem nele, depois que Voltaire o respondeu. Preso por um curto período, preferiu o exílio na Inglaterra. Depois de ter ficado e alcançado o sucesso com Édipo e a Henríada, ele passa (de início a contragosto) três anos na Inglaterra.
Aprendeu o inglês. Em Londres, conseguiu desenvolver sua intelectualidade. Se relaciona com os poetas Young e Pope; com o escritor Swift e o filósofo empirista Berkeley. Admira-se com a liberdade de expressão dos ingleses, que escrevem o que querem. A filosofia inglesa, que vinha desde o início da modernidade, com Bacon, Hobbes e Locke e os deístas, o agradou. Estuda a fundo a obra de Newton, e mais tarde propaga suas idéias na França, com as Cartas filosóficas, de 1734.
Em O ingênuo, um princípe huroniano chega na França e submete-se aos costumes franceses, tornando-se católico. Para isso um abade lhe deu um exemplar do Novo Testamento. Se apaixona pela madrinha de seu batismo. O romance mostra as diferenças entre o cristianismo primitovo e eclesiástico.
Em Zadig, Voltaire conta a história de um sábio babilônio. Ao defender a sua amada, Zadig é ferido no olho. Perde a visão desse olho. A amante, Samira, comprometre-se com outro homem. Zadig casa-se com uma camponesa. Testa a fidelidade da camponesa com um amigo, fingindo-se de morto. Traído, foge para o bosque. Adquirindo sapiência, torna-se amigo e ministro do rei. A rainha se apaixona por Zadig. O rei planeja matá-los e Zadig foge. Num transe vislumbra a ordem imutável do universo. A trajetória de Zadig prossegue. Ele é feito escravo, mas depois torna-se assessor de seu senhor.
A correspondência de Voltaire é numerosa. Não só as cartas sobre os ingleses, mas também com inúmeras personalidades da época, como Frederico, o Grande, da Prússia, de quem foi amigo.
Aos poucos, Voltaire volta a ter contato com Paris. Graças à proteção de madame Poiapadeur, vira historiógrafo real. Em 1745, Voltaire e a marquesa vão para Paris. Ele se torna candidato à Academia Francesa. Em 1746, é eleito e faz um belo discurso de posse. Em Paris escreve muitos dramas. Inicialmente fracassa, mas depois alcança sucesso com Zaire, Nahomet, Mírope, Semiramas.
Depois de quinze anos, sua relação com a marquesa torna-se difícil. Em 1748, a marquesa começa um caso com Saint Lambert. Em 1749, a marquesa morre.
Frederico II, da Prússia, o convida para fazer parte da corte, em Postdam. Ele é convidado a ser professor de francês do monarca, que manda dinheiro para a transferência. O convite se deve ao fato de ser Voltaire querido por todos, e admirado por sua inteligência e seus escritos. A estada lhe agrada, mas não de todo. Foge das cerimônias oficiais. Frederico lhe é gentil e amável e juntos mantiveram altas conversas. Voltaire tinha a sua disposíção uma boa suíte. Frederico e Voltaire se tornam muito amigos, e Voltaire não poupa elogios ao monarca falando para terceiros.
Por causa de uma interpretação de um ponto da teoria newtoniana, Voltaire polemiza com um protegido do rei, Malpertuis, presidente da academia de Berlim. Voltaire dirige seu ataque a Malpertuis num panfleto, Diatribe do dr. Akakia, em 1752. Quando o panfleto foi publicado, Frederico, o grande, manda queimá-lo (o panfleto) e Voltaire deixa a Prússia, escapando da raiva real. Em Frankfurt foi preso pelos agentes do rei. Fica preso durante semanas. Quando vai para a França, descobre que está proibido de entrar em Paris. Vai para Genebra, onde adquire uma propriedade chamada “As delícias”. Ali ele termina suas maiores obras históricas: Um ensaio sobre o costume e o espírito das nações e sobre os principais fatos da história, de Carlos magno a Luís XIII. Ele começou essa obra em Cyrei. E A era de Luís XIV.
Nas suas obras históricas, Voltaire não dedicou um enorme espaço à Judéia e ao cristianismo, e relatou com imparcialidade a gigantesca cultura oriental. O Oriente tinha mais tradição que o Ocidente. Sob nova perspectiva, descobriu-se nesse mundo, e os dogmas europeus puderam ser questionados.
Nas Delícias, tem boas relações com os evangélicos. Os enciclopedistas do Iluminismo Francês, encabeçados por Diderot, pedem sua contribuição. Escreve alguns artigos para a Enciclopédia. Ocorre então uma ruptura entre Voltaire e Diderot, por desavença de opiniões. Voltaire ironiza a defesa do estado de natureza de Rousseau (o famoso bom selvagem) dizendo que o que difere o homem dos animais é a educação e a cultura.
Voltaire sai de Genebra e vai para Ferney, onde permanece quase que o resto da vida. Cuidava de sua propriedade rural e escrevia muito. Plantou milhares de árvores. O lugar rapidamente se tornou um centro cultural, a exemplo do que acontecera com o castelo da marquesa. Alguns Iluministas iam para lá. como Helvetius e d’Alembert. Voltaire mantém em Ferney vasta correspondência, com gente de todos os tipos, incluindo muitos governantes.
Em 1755 soube do terremoto em Lisboa, onde morreram umas trinta mil pessoas. Ficou revoltado ao saber que os franceses consideravam aquilo castigo divino. Lamentou a desgraça do destino dos vivos em um poema. Voltaire sempre lutou contra o preconceito e as superstições , preferindo em lugar delas a razão e a cultura elucidativa.
A adoração a um Ente Supremo e a submissão às suas leis eternas, sem conhecê-las por completo, resulta em rituais que não fazem sentido, não tem eficácia. Os preconceitos , para Voltaire podem ser maus, medíocres, ou ter um fim útil, como amar o pai e a mãe. Preconceito é uma opinião desprovida de julgamento. Podem ser:
a) dos sentidos- como por exemplo: o sol é pequeno, pois vejo-o assim.
b)físicos – “a Terra está imóvel”.
c)históricos – por exemplo a lenda da fundação de Roma, por Remo e Rômulo.
d)religiosos – por exemplo: Maomé viajou nos céus.
Voltaire tem um tratamento racional para desvendar os mistérios da consciência humana . Dá a entender que Descartes estava errado com seu inatismo, e prefere a teoria de Locke, de que tudo deriva das sensações. A sensação é tão importante quanto o pensamento, e o mundo é uma sensação contínua. Ele faz paralelos com a cultura grega e romana, nos verbetes do Dicionário Filosófico.
As crenças tem um lado subjetivo muito forte. Nos esforçando para ver a crença, ela acabará por existir, para nós.
Os sonhos são um mistério, portanto fonte de superstições, como os que sonham com acontecimentos futuros e pensam ser Deus o responsável. O fato de não podermos usar a razão enquanto vivemos um sonho, e de ele ser um estado alternativo, de percepção etérea, é o que faz suscitar dúvidas de interpretação. Os sonhos não tem valor objetivo, para Voltaire. A moral vem de Deus, como a luz. As superstições são trevas.
O exército búlgaro invade o castelo onde Cândido mora e o transforma em soldado. Entre morrer e ser açoitado, Cândido prefere o açoite. Aguenta as chibatadas de todo o regimento durante um tempo. Os pais de Cândido são assassinados, e o castelo é destruído. O rapaz consegue fugir para Lisboa, e no barco que o leva até lá, encontra Pangloss. Em Lisboa ocorre o terremoto. A Inquisição durou mais tempo em Portugal, que se manteve católico e não aderiu ao protestantismo. Cândido, fugindo dela, vai para o Paraguai, país onde há muita diferença social.
Cândido acha ouro no interior virgem do Paraguai, mas é enganado e fica sem quase nada. Vai para Bordeaux com o que sobrou. E Cândido prossegue, sofrendo males a aventuras. Vai para a Turquia. No livro, Voltaire critica a teologia medieval e o otimismo de Leibniz, que diz ser esse o melhor dos mundos possíveis. Certa feita, um jovem defendeu Leibniz, criticando Voltaire, que replicou: “Se esse é o melhor dos mundos possíveis, por que existem tantos males e injurias?” Apesar disso, o mal, para Voltaire, não é metafísico, mas sim social. Deve-se superá-lo com trabalho e com a razão. O homem deve estar sempre ocupado, para não ficar doente e morrer. Voltaire era muito ativo e combateu o ócio. Rousseau via críticas pessoais no trabalho de Voltaire.
Para Voltaire a metafísica é uma quimera. Pode-se escrever mil tratados de sábios e não desvendar o segredo do universo, ou questões como: O que é a matéria? Porque as sementes germinam na terra?
Voltaire difundiu o conhecimento e filosofia. Suas obras foram muito lidas. Ele comenta outros autores e dá sua opinião. Torna claro os complexos sistemas filosóficos, pois é inteligente e escreve bem. O ceticismo de Voltaire é uma atitude espiritual, contra a metafísica. Voltaire fala que o Ser Supremo, cuja crença veio depois do politeísmo, é válido. Disso resulta num paradoxo, pois Deus existe e não podemos conhecer os mistérios do universo. Voltaire aceita os argumentos para a existência de Deus de São Tomás de Aquino. É a causa primeira de tudo, Inteligência suprema.
Contrariarmente ao Deus judaico-cristão, O Deus de Voltaire fez o mundo em tempos remotos e depois abandonou-o ao próprio destino. Por isso Voltaire é deísta.
Para os Iluministas, Deus não existe e é o mal da humanidade. A ignorância e o medo criaram os Deuses, e a fraqueza os preserva. É um empecilho para a civilização. O materialismo é preferencial à teologia. Essas idéias foram defendidas na Enciclopédia, cujo principal autor é Diderot. Os enciclopedistas chamavam Voltaire de fanático, por esse acreditar em Deus. Lembre-se que Voltaire participou da Enciclopédia. Voltaire via Deus na harmonia inteligente entre as coisas. Mas negava o livre arbítrio e a providência. Respondeu ao Barão d’Holbach, notório ateu, que o título de seu livro O sistema da natureza, demonstra a inteligência superior.
Voltaire foi um defensor da justiça. Defendeu muitos que estvam em desgraça e lutou contra a tirania. Não se entusiasmava com as formas de governo. Achava os legisladores reducionistas. Como viajou muito, não era patriótico. Não confiava no povo e não gostava da ignorância, que estava muito difundida. Levantava dúvidas, muitas de suas obras são repletas de perguntas. Numa carta a Rousseau, no qual comenta o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, disse que o livro de Rousseau fazia surtir o desejo de voltar a ser animal, e andar de quatro patas, mas ele já havia abandonado esse hábito há sessenta anos.
Aos oitenta e três anos, viajou para Paris, para rever a cidade-luz, depois de tanto tempo. Teve calorosa recepção. Assistiu uma peça sua encenada. Foi até a Academia de Letras de Paris, recebendo uma homenagem. Morreu não muito depois e toda a população parisiense saiu na rua, para participar do cortejo fúnebre.
Em 1750, aceitou a hospitalidade de Federico da Prússia em Sans-Soucie e aí permaneceu cerca de três anos. Após o rompimento das suas relações de amizade com Federico e várias peregrinações, estabeleceu-se na Suíça, no castelo de Ferney (1760), onde pros229 seguiu a sua infatigável actividade graças à qual se tornou o chefe do iluminismo europeu, o defensor da tolerância religiosa e dos direitos do homem. Só aos 84 anos voltou a Paris para dirigir a representação da sua última tragédia Irene, tendo sido acolhido com honras triunfais.
Faleceu a 30 de Maio de 1778. Voltaire escreveu poemas, tragédias, obras de história, romances, além de obras de filosofia e de física. Entre estas últimas, além das citadas, são importantes o Dicionário filosófico portátil (1764), que nas edições subsequentes se tornou uma espécie de enciclopédia em vários volumes, e O filósofo ignoranie (1766), o seu último escrito filosófico. Mas também é bastante notável pelo seu conceito de história o Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações (1740), a que antepôs mais tarde uma Filosofia da história (1765) em que procura caracterizai os costumes e as crenças dos principais povos do mundo.
Outros escritos menores de um certo relevo são citados adiante. Shaftesbury dissera que não há melhor remédio contra a superstição e a intolerância do que o bom humor. Voltaire pôs em prática melhor do que ninguém este princípio com todos os inexauríveis recursos de um espírito genial. O humorismo, a ironia, a sátira, o sarcasmo, a irrisão aberta ou velada, são por ele empregados de vez em quando contra a metafísica escolástica o as crenças religiosas tradicionais. Na novela Candide ou de l’optimisme, Voltaire narra as incríveis peripécias e desditas que põem à prova o optimismo de Cândido, o qual encontra sempre maneira de concluir, com o seu mestre, o doutor Pangloss, que "tudo corre o melhor possível no melhor dos mundos". Num outro romance, o Mícrómegas, do qual é protagonista um habitante da estrela Sírius, zomba da crença da velha metafísica segundo a qual o homem seria o centro e o fim do universo e, nas pisadas do Swift das Viagens de Gulliver, aborda o tema da relatividade dos poderes sensíveis, relatividade que pode ser superada somente pelo cálculo matemático. Num Poema sobre o desastre de Lisboa (1755), escrito a propósito do terremoto de Lisboa do mesmo ano, combate a máxima de que "tudo está bem" considerando-a como um insulto às dores da vida, e contrapõe a esperança de um melhor futuro construído pelo homem.
"Muda é a natureza que em vão interrogamos. não é preciso um Deus que fale ao género humano. Só a ele cabe sua obra explicar, aconselhar o débil, o sábio iluminar... Nossa esperança é que algum dia tudo esteja bem: Mera ilusão é que hoje tudo esteja bem.
VOLTAIRE: O MUNDO, O HOMEM E DEUS
Diz-se habitualmente que Voltaire, no decurso de toda a sua vida, passou do optimismo ao pessimismo e que, sob este aspecto, os seus últimos escritos marcam uma orientação diferente da dos primeiros. Na realidade, não é possível distinguir oscilações dignas de relevo na atitude de Voltaire sobre este ponto. Ele sempre esteve convencido de que o mal do mundo é uma realidade tão inegável como o bem; que é uma realidade impossível de explicar à luz da razão humana e que Ba@4e tinha razão ao afirmar a insolubilidade do problema e criticar implacavelmente todas as possíveis soluções do mesmo. Mas, por outro lado, esteve também sempre convencido de que o homem deve reconhecer a sua condição no mundo tal qual ela é, não já para se lamentar e para negar o próprio mundo, mas para alcançar uma serena aceitação da realidade. Nas Anotações sobre os Pensamentos de Pascal (1728), que é um escrito juvenil, não pretende refutar o diagnóstico de Pascal sobre a condição humana, mas apenas extrair dela um ensinamento muito diferente. Pascal, com efeito, inferia desta situação a negação do mundo e a exigência de se refugiar no transcendente. Voltaire reconhece que tal condição é a única condição possível para o homem e que, portanto, o homem deve aceitá-la e dela tirar todo o partido possível. "Se o homem fosse perfeito, diz ele, seria Deus; e as pretensas contrariedades a que vós chamais contradições são os ingredientes necessários de que se compõe o homem, o qual é, como o resto da natureza, aquilo que deve sem. É inútil desesperar por não ter quatro pés e duas asas. E as paixões que Pascal condenava, em primeiro lugar o amor próprio, não são no homem simples aberrações porque o movem a agir, visto que o homem é feito para a acção. Quanto à tendência do homem para se. divertir, Voltaire observa: "A nossa condição é Precisamente Pensar (...)" (38).
Pascal e Voltaire reconhecem ambos que O homem, pela sua condição, está ligado ao mundo; mas Pascal quer que ele se liberte e afaste do mundo, ao passo que Voltaire Pensa que ele o deve reconhecer e amar. A diferença está toda nisto; o pessimismo ou o Optimismo Pouco têm a ver com a questão.
Voltaire toma os traços fundamentais da sua concepção do mundo dos empiristas e dos deistas ingleses- Decerto que Deus existe como autor do mundo; e, conquanto se encontrem nesta opinião muitas dificuldades, as dificuldades com, que depara a opinião contrária são ainda maiores. Voltaire repete a este propósito a argumentação de Clarke e dos deístas (que reproduz o velho argumento cosMológico): "Existe alguma coisa, Portanto existe alguma coisa de eterno já que nada se produz a partir do nada. Toda a obra que nos mostre meios e um fim revela um artifício: portanto, este universo composto de meios, cada um dos quais tem o seu fim, revela uni artífice potentíssimo e inteligentíssimo" (Dict. phil., art. "Dieu"; Tra@té de Mét., 2).
Voltaire repudia, portanto, a opinião de que a matéria se tenha criado e organizado por si mesma. Mas, por outro lado, recusa-se a determinar os atributos de Deus, considerando ambíguo também o conceito de perfeição, que não pode decerto ser o mesmo para o homem e para Deus. E não quer admitir qualquer intervenção de Deus no homem e no mundo humano. Deus é apenas o autor da ordem do mundo físico. O bem e o mal não são ordens divinas, mas atributos do que é útil ou nocivo à sociedade. A aceitação do critério utilitarista da verdade moral permite a Voltaire afirmar terminantemente que ela não interessa de modo algum à divindade. "Deus pôs os homens e os animais sobre a terra, e eles devem pensar em conduzir-se o melhor possível". Tanto pior para os carneiros que se deixam devorar pelo lobo. "Mas se um carneiro fosse dizer a um lobo: tu desprezas o bem moral e Deus castigar-te-á, o lobo responder-lhe ia: eu procedo de acordo com o meu bem físico e, pelo visto, Deus pouco se importa que eu te coma ou não"
É do interesse dos homens conduzirem-se de modo a tornar possível a vida em sociedade; mas isto requer o sacrifício das paixões próprias, que são indispensáveis, como o sangue que lhes corre nas veias; e não se pode tirar o sangue a um homem, porque pode ser acometido de uma apoplexia (1b., 8 ).
O homem é livre, mas dentro de limites bastante restritos. "A nossa liberdade é débil e limitada, como todas as nossas faculdades. Nós fortificamo-la habituando-nos a reflectir e este exercício torna-a um pouco mais vigorosa. Mas, apesar de todos os esforços que façamos, nunca poderemos conseguir que a nossa razão impere como senhora de todos os nossos desejos; existirão sempre na nossa alma, como no nosso corpo, impulsos involuntários. Se fôssemos sempre livres, seríamos o que o próprio Deus é" (Ib. 5). Na sua última obra filosófica, Le philosophe ignorant (1766), Voltaire insiste na limitação da liberdade humana, que não consiste nunca na ausência de qualquer motivo ou determinação. "Seria estranho que toda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um pequeno animal com a altura de cinco pés que, a despeito destas leis, pudesse agir sempre como lhe aprouvesse, segundo o seu capricho. Agiria ao acaso, e sabe-se que o acaso não é nada; nós inventámos esta palavra para exprimir o efeito conhecido de toda a causa desconhecida" (Phil. ign., 13).
VOLTAIRE: A HISTÓRIA E O PROGRESSO
No decurso da sua actividade historiográfica, Voltaire dilucidou sempre os conceitos em que ela se inspirava. É como filósofo que ele pretende tratar a História, isto é, colhendo, para lá do amontoado dos factos, uma ordem progressiva que revele o significado permanente deles. A primeira exigência é a de depurar os factos de todas as superstruturas fantásticas de que o fanatismo, o espírito romanesco e a credulidade os revestiram. "Em quase todas as nações, a História é desfigurada pela fábula até ao momento em que a filosofia vem iluminar os homens; e quando, por fim, a filosofia surge no meio destas trovas, encontra os espíritos tão obnubilados por séculos de erros que mal logra esclarecê-4os; deparam-se-lhe cerimónias, factos, monumentos, estabelecidos para sustentar mentiras" (Essais sur les moeurs, cap. 197). A filosofia é o espírito crítico que se opõe à tradição e separa o verdadeiro do falso.
Voltaire manifesta aqui com idêntica força a exigência histórica e antitradicionalista que Bayle representara. Mas a esta primeira exigência junta-se uma segunda, a de escolher, entre os próprios factos, os mais importantes e significativos para delinear a "história do espírito humano". Deste modo, cumpre escolher, na massa do material bruto e informe, o que é necessário para construir um edifício; é mister eliminar os pormenores das guerras, tão nocivos como falsos, as pequenas negociações que são apenas velhacarias inúteis, as aventuras particulares que abafam os grandes acontecimentos, o é preciso conservar apenas os factos que, pintam os costumes e fazem nascer desse caos um quadro geral e bem articulado (Ib., fragmento). Voltaire seguiu este ideal, sobretudo no Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações. em que dá o máximo relevo precisamente ao nascimento e morte das instituições e das crenças fundamentais dos povos. Mas em toda a sua obra historiográfica o que importa a Voltaire é pôr em luz o renascimento e o progresso do espírito humano, isto é, as tentativas da razão humana para se libertar dos preconceitos e erigir-se em guia da vida social do homem. O progresso da história consiste precisamente e apenas no êxito progressivo de tais tentativas, já que a substância do espírito humano permanece inalterada e imutável. "Resulta d"e quadro, diz Voltaire (lb., cap. 197), que tudo o que concerne intimamente à natureza humana se assemelha de um extremo ao outro do universo; que tudo o que pode depender dos costumes é diferente e se assemelha apenas por acaso. O império do costume é muito mais vasto do que o da natureza; estende-se aos hábitos e a todos os usos, e expande-se na sua variedade por todo o universo. A natureza manifesta assim a sua unidade: estabelece por toda a parte um pequeno número de princípios invariáveis, de modo que o fundo é em toda a parte o mesmo, mas a cultura produz frutos diversos". Na verdade, o que é susceptível de progresso não é o espírito humano nem a razão, que é a essência dele, mas sim o domínio que a razão exerce sobre as paixões em que se radicam os preconceitos e os erros. A História apresenta-se assim a Voltaire como história do iluminismo, do esclarecimento progressivo que o homem faz de si mesmo, da progressiva descoberta do princípio racional que o rege; e implica uma alternância incessante de períodos sombrios e de renascimentos.
O conceito voltairiano da História liga-se estreitamente ao iluminismo, porque, na realidade, não é mais do que a historicização do iluminismo, o seu reconhecimento no passado. Mas com isto não se pretendeu aniquilar a problematicidade da História, e Voltaire sente-se ele mesmo um instrumento daquela força libertadora da razão, cuja história pretende descrever.
PSICOFILOSOFO
FONTE
História da Filosofia
Volume sete
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS
Ângelo Miguel Abrantes
(segunda−feira, 30 de Dezembro de 2002)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VII
TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIO BORGES COELHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. José Falcão, 57−Porto
Seu padrinho o introduziu numa vida desregrada. Conheceu escritores, poetas e cortesãos. Ficava na rua até tarde, divertindo-se com fanfarrões epicuristas e voluptuosos. Seu pai, homem sério, não viu com bons olhos as atividades do filho. Manda-o para a casa de um parente, para mantê-lo quase preso. Mas o parente, quando o conhece, gosta tanto dele que lhe dá liberdade.
Quando François termina o colégio, seu pai arranja para que se torne pajém do marquês de Châteauneut. Parte em missão diplomática com esse embaixador para Haya, Holanda. Logo que chega lá encontra uma moça: Olympe Runoyer, a Pimpette. François teve encontros amorosos com a moça e queria que ela fosse morar com ele na França. O caso foi descoberto. François escrevia cartas apaixonadas, dizendo:”não há dúvida de que irei amá-la para sempre.” Mandam-o de volta para a casa de seu pai.
Compõe uma ode a Luís XIII, com a qual participa de um concurso, que não vence. Luís XIV morre, e seu filho é muito jovem para ser rei. O poder ficou com um regente. Sem um governador legítimo,a vida em Paris corria sem controle e François corria com ela.
François começa a ficar conhecido por ser brilhante, imprudente e turbulento. É malicioso e tem os olhos vivos e perpicazes. Vira amante de Susanne de Livry, faz versos galantes e poemas cômicos. Ele aspira ser o grande trágico da época, e não são poucas as suas tragédias. Suas obras somadas dão noventa e nove volumes. É um espírito versátil, dono de uma cultura notável, que o ajudava a ser fecundo. Em 1715 escreve a peça Édipo e o poema Henríada, um épico sobre Henrique IV. Sua fama aumenta e todas as coisas espirituosas e maliciosas são atribuídas a ele, inclusive algumas anedotas, contra o regente que governava, duque de Órleans. As anedotas falavam que o regente conspirava para usurpar o trono. Em 1717, o regente manda-o para a Bastilha, a prisão parisiense. Na Bastilha adota o nome de Voltaire. Depois de quase um ano de prisão, o regente o soltou. A tragédia que escrevera, Édipo, é produzida em 1718, e fica em cartaz quarenta e cinco noites seguidas, um recorde para a época. Se enconta com Fontenelle. Com um lucro de 4000 francos da peça, Voltaire faz investimentos financeiros, empresta dinheiro, e financia o tráfico de escravos, que era um negócio rentável. Assim , fez render seu dinheiro e pode viver com folga.
Então, uma briga com o duque de Sully, cavaleiro de Rohden, o obriga a ir para o exílio. O nobre não aceita seu desafio para um duelo, e dispõe de meios para prendê-lo de novo. O cavaleiro mandou seus homens baterem nele, depois que Voltaire o respondeu. Preso por um curto período, preferiu o exílio na Inglaterra. Depois de ter ficado e alcançado o sucesso com Édipo e a Henríada, ele passa (de início a contragosto) três anos na Inglaterra.
Aprendeu o inglês. Em Londres, conseguiu desenvolver sua intelectualidade. Se relaciona com os poetas Young e Pope; com o escritor Swift e o filósofo empirista Berkeley. Admira-se com a liberdade de expressão dos ingleses, que escrevem o que querem. A filosofia inglesa, que vinha desde o início da modernidade, com Bacon, Hobbes e Locke e os deístas, o agradou. Estuda a fundo a obra de Newton, e mais tarde propaga suas idéias na França, com as Cartas filosóficas, de 1734.
Voltaire absorve rapidamente a cultura e a ciência inglesa. Gosta da tolerância religiosa. Começa a amar a marquesa de Châtelet, Emile de Bretiul. A marquesa é culta, traduzira Newton e apresentou Leibniz a Voltaire. Ela lhe dá proteção no seu castelo de Cyrei. Acha Voltaire interessante, o mais belo ornamento da França. Ela tinha vinte e oito anos, e ele quarenta. Graças a ela e às grandes damas, acredita na igualdade mental inata entre os sexos. No castelo de Cyrei, passavam o dia estudando, pesquisando e fazendo experimentos no laboratório. Voltaire, com sua amante, aprofundou-se em física, metafísica e história. O castelo tornou-se um centro cultural. Voltaire aprefeiçoa seu estilo ionico e frívolo. Escreve Alzire, Mérope, O filho pródigo, Maomé, O mundano, O ingênuo e Cândido.São romances com bom humor. Will Durant diz que os heróis desses romances são idéias, os vilões são superstições e os acontecimentos são pensamentos.
Em O ingênuo, um princípe huroniano chega na França e submete-se aos costumes franceses, tornando-se católico. Para isso um abade lhe deu um exemplar do Novo Testamento. Se apaixona pela madrinha de seu batismo. O romance mostra as diferenças entre o cristianismo primitovo e eclesiástico.
Romance Micrômegas |
No romance Micrômegas, Voltaire narra a visita de um enorme habitante de Sirius a Terra. Com oito léguas de altura, e mil sentidos, essa raça costuma viver mais de dez mil anos. Sob essa perspectiva vem a tona a finitude e a pequenez da Terra e seus habitantes. O ET diz que é na Terra que a felicidade mora, se dirigindo aos humanos, átomos inteligentes e imateriais. Um filósofo humano expõem ao visitante a brutalidade da existência carniceira na Terra, provocando ira e decepção no alienígena. O filósofo o dissuade de seu impulso de matar a todos com suas passadas.
Em Zadig, Voltaire conta a história de um sábio babilônio. Ao defender a sua amada, Zadig é ferido no olho. Perde a visão desse olho. A amante, Samira, comprometre-se com outro homem. Zadig casa-se com uma camponesa. Testa a fidelidade da camponesa com um amigo, fingindo-se de morto. Traído, foge para o bosque. Adquirindo sapiência, torna-se amigo e ministro do rei. A rainha se apaixona por Zadig. O rei planeja matá-los e Zadig foge. Num transe vislumbra a ordem imutável do universo. A trajetória de Zadig prossegue. Ele é feito escravo, mas depois torna-se assessor de seu senhor.
A correspondência de Voltaire é numerosa. Não só as cartas sobre os ingleses, mas também com inúmeras personalidades da época, como Frederico, o Grande, da Prússia, de quem foi amigo.
Aos poucos, Voltaire volta a ter contato com Paris. Graças à proteção de madame Poiapadeur, vira historiógrafo real. Em 1745, Voltaire e a marquesa vão para Paris. Ele se torna candidato à Academia Francesa. Em 1746, é eleito e faz um belo discurso de posse. Em Paris escreve muitos dramas. Inicialmente fracassa, mas depois alcança sucesso com Zaire, Nahomet, Mírope, Semiramas.
Depois de quinze anos, sua relação com a marquesa torna-se difícil. Em 1748, a marquesa começa um caso com Saint Lambert. Em 1749, a marquesa morre.
Frederico II, da Prússia, o convida para fazer parte da corte, em Postdam. Ele é convidado a ser professor de francês do monarca, que manda dinheiro para a transferência. O convite se deve ao fato de ser Voltaire querido por todos, e admirado por sua inteligência e seus escritos. A estada lhe agrada, mas não de todo. Foge das cerimônias oficiais. Frederico lhe é gentil e amável e juntos mantiveram altas conversas. Voltaire tinha a sua disposíção uma boa suíte. Frederico e Voltaire se tornam muito amigos, e Voltaire não poupa elogios ao monarca falando para terceiros.
Por causa de uma interpretação de um ponto da teoria newtoniana, Voltaire polemiza com um protegido do rei, Malpertuis, presidente da academia de Berlim. Voltaire dirige seu ataque a Malpertuis num panfleto, Diatribe do dr. Akakia, em 1752. Quando o panfleto foi publicado, Frederico, o grande, manda queimá-lo (o panfleto) e Voltaire deixa a Prússia, escapando da raiva real. Em Frankfurt foi preso pelos agentes do rei. Fica preso durante semanas. Quando vai para a França, descobre que está proibido de entrar em Paris. Vai para Genebra, onde adquire uma propriedade chamada “As delícias”. Ali ele termina suas maiores obras históricas: Um ensaio sobre o costume e o espírito das nações e sobre os principais fatos da história, de Carlos magno a Luís XIII. Ele começou essa obra em Cyrei. E A era de Luís XIV.
Nas suas obras históricas, Voltaire não dedicou um enorme espaço à Judéia e ao cristianismo, e relatou com imparcialidade a gigantesca cultura oriental. O Oriente tinha mais tradição que o Ocidente. Sob nova perspectiva, descobriu-se nesse mundo, e os dogmas europeus puderam ser questionados.
Nas Delícias, tem boas relações com os evangélicos. Os enciclopedistas do Iluminismo Francês, encabeçados por Diderot, pedem sua contribuição. Escreve alguns artigos para a Enciclopédia. Ocorre então uma ruptura entre Voltaire e Diderot, por desavença de opiniões. Voltaire ironiza a defesa do estado de natureza de Rousseau (o famoso bom selvagem) dizendo que o que difere o homem dos animais é a educação e a cultura.
Voltaire sai de Genebra e vai para Ferney, onde permanece quase que o resto da vida. Cuidava de sua propriedade rural e escrevia muito. Plantou milhares de árvores. O lugar rapidamente se tornou um centro cultural, a exemplo do que acontecera com o castelo da marquesa. Alguns Iluministas iam para lá. como Helvetius e d’Alembert. Voltaire mantém em Ferney vasta correspondência, com gente de todos os tipos, incluindo muitos governantes.
Em 1755 soube do terremoto em Lisboa, onde morreram umas trinta mil pessoas. Ficou revoltado ao saber que os franceses consideravam aquilo castigo divino. Lamentou a desgraça do destino dos vivos em um poema. Voltaire sempre lutou contra o preconceito e as superstições , preferindo em lugar delas a razão e a cultura elucidativa.
A adoração a um Ente Supremo e a submissão às suas leis eternas, sem conhecê-las por completo, resulta em rituais que não fazem sentido, não tem eficácia. Os preconceitos , para Voltaire podem ser maus, medíocres, ou ter um fim útil, como amar o pai e a mãe. Preconceito é uma opinião desprovida de julgamento. Podem ser:
a) dos sentidos- como por exemplo: o sol é pequeno, pois vejo-o assim.
b)físicos – “a Terra está imóvel”.
c)históricos – por exemplo a lenda da fundação de Roma, por Remo e Rômulo.
d)religiosos – por exemplo: Maomé viajou nos céus.
Voltaire tem um tratamento racional para desvendar os mistérios da consciência humana . Dá a entender que Descartes estava errado com seu inatismo, e prefere a teoria de Locke, de que tudo deriva das sensações. A sensação é tão importante quanto o pensamento, e o mundo é uma sensação contínua. Ele faz paralelos com a cultura grega e romana, nos verbetes do Dicionário Filosófico.
As crenças tem um lado subjetivo muito forte. Nos esforçando para ver a crença, ela acabará por existir, para nós.
Os sonhos são um mistério, portanto fonte de superstições, como os que sonham com acontecimentos futuros e pensam ser Deus o responsável. O fato de não podermos usar a razão enquanto vivemos um sonho, e de ele ser um estado alternativo, de percepção etérea, é o que faz suscitar dúvidas de interpretação. Os sonhos não tem valor objetivo, para Voltaire. A moral vem de Deus, como a luz. As superstições são trevas.
O dicionário filosófico foi publicado em 1764 . Foi o primeiro livro de bolso da história e alcançou muito sucesso. As idéias nele contidas são revolucionárias, pois criticam o Estado e a religião. Voltaire faz muitas citações de grandes autores, e o livro tem uma parte histórica grande. Voltaire faz parte desse movimento de renovação da cultura e crítica da política absolutista chamada Iluminismo. Suas idéias foram propagadas na Revolução Francesa e refletiam os ideais dessa revolução, durante a qual foi muito lembrado. Voltaire não despreza a cultura pagã e oriental, como fazem outros autores.
Cândido, sua obra principal, foi escrito em três dias. Conta com otimismo pessimista a história de um simples rapaz, filho de um barão. Seu mestre, Pangloss, inverte a lei da causalidade, ao afirmar que as pedras foram feitas para construir castelos e o nariz para suportar óculos. No entanto, se acha muito culto.
O exército búlgaro invade o castelo onde Cândido mora e o transforma em soldado. Entre morrer e ser açoitado, Cândido prefere o açoite. Aguenta as chibatadas de todo o regimento durante um tempo. Os pais de Cândido são assassinados, e o castelo é destruído. O rapaz consegue fugir para Lisboa, e no barco que o leva até lá, encontra Pangloss. Em Lisboa ocorre o terremoto. A Inquisição durou mais tempo em Portugal, que se manteve católico e não aderiu ao protestantismo. Cândido, fugindo dela, vai para o Paraguai, país onde há muita diferença social.
Cândido acha ouro no interior virgem do Paraguai, mas é enganado e fica sem quase nada. Vai para Bordeaux com o que sobrou. E Cândido prossegue, sofrendo males a aventuras. Vai para a Turquia. No livro, Voltaire critica a teologia medieval e o otimismo de Leibniz, que diz ser esse o melhor dos mundos possíveis. Certa feita, um jovem defendeu Leibniz, criticando Voltaire, que replicou: “Se esse é o melhor dos mundos possíveis, por que existem tantos males e injurias?” Apesar disso, o mal, para Voltaire, não é metafísico, mas sim social. Deve-se superá-lo com trabalho e com a razão. O homem deve estar sempre ocupado, para não ficar doente e morrer. Voltaire era muito ativo e combateu o ócio. Rousseau via críticas pessoais no trabalho de Voltaire.
Para Voltaire a metafísica é uma quimera. Pode-se escrever mil tratados de sábios e não desvendar o segredo do universo, ou questões como: O que é a matéria? Porque as sementes germinam na terra?
Voltaire difundiu o conhecimento e filosofia. Suas obras foram muito lidas. Ele comenta outros autores e dá sua opinião. Torna claro os complexos sistemas filosóficos, pois é inteligente e escreve bem. O ceticismo de Voltaire é uma atitude espiritual, contra a metafísica. Voltaire fala que o Ser Supremo, cuja crença veio depois do politeísmo, é válido. Disso resulta num paradoxo, pois Deus existe e não podemos conhecer os mistérios do universo. Voltaire aceita os argumentos para a existência de Deus de São Tomás de Aquino. É a causa primeira de tudo, Inteligência suprema.
Contrariarmente ao Deus judaico-cristão, O Deus de Voltaire fez o mundo em tempos remotos e depois abandonou-o ao próprio destino. Por isso Voltaire é deísta.
Para os Iluministas, Deus não existe e é o mal da humanidade. A ignorância e o medo criaram os Deuses, e a fraqueza os preserva. É um empecilho para a civilização. O materialismo é preferencial à teologia. Essas idéias foram defendidas na Enciclopédia, cujo principal autor é Diderot. Os enciclopedistas chamavam Voltaire de fanático, por esse acreditar em Deus. Lembre-se que Voltaire participou da Enciclopédia. Voltaire via Deus na harmonia inteligente entre as coisas. Mas negava o livre arbítrio e a providência. Respondeu ao Barão d’Holbach, notório ateu, que o título de seu livro O sistema da natureza, demonstra a inteligência superior.
Voltaire foi um defensor da justiça. Defendeu muitos que estvam em desgraça e lutou contra a tirania. Não se entusiasmava com as formas de governo. Achava os legisladores reducionistas. Como viajou muito, não era patriótico. Não confiava no povo e não gostava da ignorância, que estava muito difundida. Levantava dúvidas, muitas de suas obras são repletas de perguntas. Numa carta a Rousseau, no qual comenta o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, disse que o livro de Rousseau fazia surtir o desejo de voltar a ser animal, e andar de quatro patas, mas ele já havia abandonado esse hábito há sessenta anos.
Aos oitenta e três anos, viajou para Paris, para rever a cidade-luz, depois de tanto tempo. Teve calorosa recepção. Assistiu uma peça sua encenada. Foi até a Academia de Letras de Paris, recebendo uma homenagem. Morreu não muito depois e toda a população parisiense saiu na rua, para participar do cortejo fúnebre.
No que toca ao conhecimento, Voltaire considera, tal como Locke, que o seu ponto de partida são as sensações e que de se desenvolve mantendo-as e dando-lhes forma. Voltaire repete os argumentos que Locke empregou sobre a existência dos objectos exteriores; e acrescenta um, por sua conta: o homem é essencialmente sociável e não poderia ser sociável se não houvesse uma sociedade e, por consequência, outros homens fora de nós (Ib., 4). As actividades espirituais que se encontram no homem não permitem afirmar a existência de uma substância imaterial chamada alma. Ninguém pode dizer,
de facto, o que é a alma; e a disparidade das opiniões a este propósito é muito significativa. Sabemos que é algo de comum ao animal chamado homem e àquilo que se chama animal. Este algo poderá ser a própria matéria? Diz-se que é impossível que a matéria pense. Mas Voltaire não admite tal impossibilidade. "Se o pensamento fosse um composto da matéria, eu reconheceria que o pensamento deveria ser extenso e divisível. Mas, se o pensamento é um atributo de Deus dado à matéria, não vejo que seja necessário que tal atributo seja extenso e divisível. Vejo, de facto, que Deus comunicou à matéria outras propriedades que não têm nem extensão nem divisibilidade: o movimento, a gravitação, por exemplo, que actua sem corpo intermediário na razão directa da massa o não da superfície, e na inversa do quadrado das distâncias, é uma qualidade real demonstrada, cuja causa é tão oculta como a do pensamento" (lb., 5).
VOLTAIRE: VIDA E ESCRITOS
François Marie Arouct, que adoptou o nome de Voltaire, nasceu em Paris a 21 de Novembro de 1694. Foi educado num colégio de jesuítas e ingressou bastante jovem na vida da aristocracia cortesã francesa. Mas uma disputa com um nobre, o cavaleiro de Rohan, fê-lo ir parar à Bastilha. Nos anos de 1727-29 viveu em Londres e assimilou a cultura inglesa da época. Nas Cartas sobre os ingleses, ou Cartas filosóficas (1734), regista os vários aspectos daquela cultura insistindo especialmente sobre os temas mais característicos da sua actividade filosófica, histórica, literária e política. Defende assim a religiosidade puramente interior e alheia a ritos e cerimónias dos Quacres (Lett., I-IV); põe em relevo a liberdade política e económica do povo inglês (1b., lX, X); analisa a literatura inglesa e traduz poeticamente alguns trechos da mesma (1b., XVI11-XX111); e, na parte central, exalta a filosofia inglesa nas pessoas de Bacon, de Locke e de Newton (Ib., XII-XVII). Comparando Descartes a Newton, exalta os méritos de matemático de Descartes, mas reconhece a superioridade da doutrina de Newton (Ib., XIV). Descartes "fez uma filosofia como se faz uni bom romance: tudo parece verosímil e nada é verdadeiro". No mesmo ano de 1734, Voltaire publicou o seu Tratado de metafísica, no qual versa os temas filosóficos que já abordara nas Cartas sobre os ingleses. Em 1734 foi viver para Cirey, em casa da sua amiga Madame de Châtelet, e foram esses os anos mais fecundos da sua actividade de escritor. Voltaire publicou então numerosíssimas obras literárias, filosóficas e físicas. Em 1738 apareceram os Elementos da filosofia de Newton, e em 1740 a Metafísica de Newton ou paralelo entre as opiniões de Newton e Leibniz.
Em 1750, aceitou a hospitalidade de Federico da Prússia em Sans-Soucie e aí permaneceu cerca de três anos. Após o rompimento das suas relações de amizade com Federico e várias peregrinações, estabeleceu-se na Suíça, no castelo de Ferney (1760), onde pros229 seguiu a sua infatigável actividade graças à qual se tornou o chefe do iluminismo europeu, o defensor da tolerância religiosa e dos direitos do homem. Só aos 84 anos voltou a Paris para dirigir a representação da sua última tragédia Irene, tendo sido acolhido com honras triunfais.
Faleceu a 30 de Maio de 1778. Voltaire escreveu poemas, tragédias, obras de história, romances, além de obras de filosofia e de física. Entre estas últimas, além das citadas, são importantes o Dicionário filosófico portátil (1764), que nas edições subsequentes se tornou uma espécie de enciclopédia em vários volumes, e O filósofo ignoranie (1766), o seu último escrito filosófico. Mas também é bastante notável pelo seu conceito de história o Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações (1740), a que antepôs mais tarde uma Filosofia da história (1765) em que procura caracterizai os costumes e as crenças dos principais povos do mundo.
Outros escritos menores de um certo relevo são citados adiante. Shaftesbury dissera que não há melhor remédio contra a superstição e a intolerância do que o bom humor. Voltaire pôs em prática melhor do que ninguém este princípio com todos os inexauríveis recursos de um espírito genial. O humorismo, a ironia, a sátira, o sarcasmo, a irrisão aberta ou velada, são por ele empregados de vez em quando contra a metafísica escolástica o as crenças religiosas tradicionais. Na novela Candide ou de l’optimisme, Voltaire narra as incríveis peripécias e desditas que põem à prova o optimismo de Cândido, o qual encontra sempre maneira de concluir, com o seu mestre, o doutor Pangloss, que "tudo corre o melhor possível no melhor dos mundos". Num outro romance, o Mícrómegas, do qual é protagonista um habitante da estrela Sírius, zomba da crença da velha metafísica segundo a qual o homem seria o centro e o fim do universo e, nas pisadas do Swift das Viagens de Gulliver, aborda o tema da relatividade dos poderes sensíveis, relatividade que pode ser superada somente pelo cálculo matemático. Num Poema sobre o desastre de Lisboa (1755), escrito a propósito do terremoto de Lisboa do mesmo ano, combate a máxima de que "tudo está bem" considerando-a como um insulto às dores da vida, e contrapõe a esperança de um melhor futuro construído pelo homem.
"Muda é a natureza que em vão interrogamos. não é preciso um Deus que fale ao género humano. Só a ele cabe sua obra explicar, aconselhar o débil, o sábio iluminar... Nossa esperança é que algum dia tudo esteja bem: Mera ilusão é que hoje tudo esteja bem.
VOLTAIRE: O MUNDO, O HOMEM E DEUS
Diz-se habitualmente que Voltaire, no decurso de toda a sua vida, passou do optimismo ao pessimismo e que, sob este aspecto, os seus últimos escritos marcam uma orientação diferente da dos primeiros. Na realidade, não é possível distinguir oscilações dignas de relevo na atitude de Voltaire sobre este ponto. Ele sempre esteve convencido de que o mal do mundo é uma realidade tão inegável como o bem; que é uma realidade impossível de explicar à luz da razão humana e que Ba@4e tinha razão ao afirmar a insolubilidade do problema e criticar implacavelmente todas as possíveis soluções do mesmo. Mas, por outro lado, esteve também sempre convencido de que o homem deve reconhecer a sua condição no mundo tal qual ela é, não já para se lamentar e para negar o próprio mundo, mas para alcançar uma serena aceitação da realidade. Nas Anotações sobre os Pensamentos de Pascal (1728), que é um escrito juvenil, não pretende refutar o diagnóstico de Pascal sobre a condição humana, mas apenas extrair dela um ensinamento muito diferente. Pascal, com efeito, inferia desta situação a negação do mundo e a exigência de se refugiar no transcendente. Voltaire reconhece que tal condição é a única condição possível para o homem e que, portanto, o homem deve aceitá-la e dela tirar todo o partido possível. "Se o homem fosse perfeito, diz ele, seria Deus; e as pretensas contrariedades a que vós chamais contradições são os ingredientes necessários de que se compõe o homem, o qual é, como o resto da natureza, aquilo que deve sem. É inútil desesperar por não ter quatro pés e duas asas. E as paixões que Pascal condenava, em primeiro lugar o amor próprio, não são no homem simples aberrações porque o movem a agir, visto que o homem é feito para a acção. Quanto à tendência do homem para se. divertir, Voltaire observa: "A nossa condição é Precisamente Pensar (...)" (38).
Pascal e Voltaire reconhecem ambos que O homem, pela sua condição, está ligado ao mundo; mas Pascal quer que ele se liberte e afaste do mundo, ao passo que Voltaire Pensa que ele o deve reconhecer e amar. A diferença está toda nisto; o pessimismo ou o Optimismo Pouco têm a ver com a questão.
Voltaire toma os traços fundamentais da sua concepção do mundo dos empiristas e dos deistas ingleses- Decerto que Deus existe como autor do mundo; e, conquanto se encontrem nesta opinião muitas dificuldades, as dificuldades com, que depara a opinião contrária são ainda maiores. Voltaire repete a este propósito a argumentação de Clarke e dos deístas (que reproduz o velho argumento cosMológico): "Existe alguma coisa, Portanto existe alguma coisa de eterno já que nada se produz a partir do nada. Toda a obra que nos mostre meios e um fim revela um artifício: portanto, este universo composto de meios, cada um dos quais tem o seu fim, revela uni artífice potentíssimo e inteligentíssimo" (Dict. phil., art. "Dieu"; Tra@té de Mét., 2).
Voltaire repudia, portanto, a opinião de que a matéria se tenha criado e organizado por si mesma. Mas, por outro lado, recusa-se a determinar os atributos de Deus, considerando ambíguo também o conceito de perfeição, que não pode decerto ser o mesmo para o homem e para Deus. E não quer admitir qualquer intervenção de Deus no homem e no mundo humano. Deus é apenas o autor da ordem do mundo físico. O bem e o mal não são ordens divinas, mas atributos do que é útil ou nocivo à sociedade. A aceitação do critério utilitarista da verdade moral permite a Voltaire afirmar terminantemente que ela não interessa de modo algum à divindade. "Deus pôs os homens e os animais sobre a terra, e eles devem pensar em conduzir-se o melhor possível". Tanto pior para os carneiros que se deixam devorar pelo lobo. "Mas se um carneiro fosse dizer a um lobo: tu desprezas o bem moral e Deus castigar-te-á, o lobo responder-lhe ia: eu procedo de acordo com o meu bem físico e, pelo visto, Deus pouco se importa que eu te coma ou não"
É do interesse dos homens conduzirem-se de modo a tornar possível a vida em sociedade; mas isto requer o sacrifício das paixões próprias, que são indispensáveis, como o sangue que lhes corre nas veias; e não se pode tirar o sangue a um homem, porque pode ser acometido de uma apoplexia (1b., 8 ).
Além disso, é absurdo sustentar que o homem pense sempre; sendo assim, é absurdo admitir no homem uma substância cuja essência seja pensar. Será mais verosímil admitir que Deus organizou os corpos tanto para pensar como para comer e para digerir. Posta em dúvida a realidade de uma substância pensante, a imortalidade da alma converte-se em pura matéria de fé. A sensibilidade e o intelecto do homem nada têm de imortal; como se poderia, pois, chegar a demonstrar a eternidade? Não existem certamente demonstrações válidas contra a espiritualidade e a imortalidade da alma; tais demonstrações são destituídas de toda a verosimilhança e é injusto e despropositado pretender efectuar uma demonstração onde somente são possíveis conjecturas. Além disso, a mortalidade da alma não é contrária ao bem da sociedade, como o provaram os antigos hebreus que consideravam a alma material e mortal.
O homem é livre, mas dentro de limites bastante restritos. "A nossa liberdade é débil e limitada, como todas as nossas faculdades. Nós fortificamo-la habituando-nos a reflectir e este exercício torna-a um pouco mais vigorosa. Mas, apesar de todos os esforços que façamos, nunca poderemos conseguir que a nossa razão impere como senhora de todos os nossos desejos; existirão sempre na nossa alma, como no nosso corpo, impulsos involuntários. Se fôssemos sempre livres, seríamos o que o próprio Deus é" (Ib. 5). Na sua última obra filosófica, Le philosophe ignorant (1766), Voltaire insiste na limitação da liberdade humana, que não consiste nunca na ausência de qualquer motivo ou determinação. "Seria estranho que toda a natureza, todos os astros obedecessem a leis eternas, e que houvesse um pequeno animal com a altura de cinco pés que, a despeito destas leis, pudesse agir sempre como lhe aprouvesse, segundo o seu capricho. Agiria ao acaso, e sabe-se que o acaso não é nada; nós inventámos esta palavra para exprimir o efeito conhecido de toda a causa desconhecida" (Phil. ign., 13).
VOLTAIRE: A HISTÓRIA E O PROGRESSO
No decurso da sua actividade historiográfica, Voltaire dilucidou sempre os conceitos em que ela se inspirava. É como filósofo que ele pretende tratar a História, isto é, colhendo, para lá do amontoado dos factos, uma ordem progressiva que revele o significado permanente deles. A primeira exigência é a de depurar os factos de todas as superstruturas fantásticas de que o fanatismo, o espírito romanesco e a credulidade os revestiram. "Em quase todas as nações, a História é desfigurada pela fábula até ao momento em que a filosofia vem iluminar os homens; e quando, por fim, a filosofia surge no meio destas trovas, encontra os espíritos tão obnubilados por séculos de erros que mal logra esclarecê-4os; deparam-se-lhe cerimónias, factos, monumentos, estabelecidos para sustentar mentiras" (Essais sur les moeurs, cap. 197). A filosofia é o espírito crítico que se opõe à tradição e separa o verdadeiro do falso.
Voltaire manifesta aqui com idêntica força a exigência histórica e antitradicionalista que Bayle representara. Mas a esta primeira exigência junta-se uma segunda, a de escolher, entre os próprios factos, os mais importantes e significativos para delinear a "história do espírito humano". Deste modo, cumpre escolher, na massa do material bruto e informe, o que é necessário para construir um edifício; é mister eliminar os pormenores das guerras, tão nocivos como falsos, as pequenas negociações que são apenas velhacarias inúteis, as aventuras particulares que abafam os grandes acontecimentos, o é preciso conservar apenas os factos que, pintam os costumes e fazem nascer desse caos um quadro geral e bem articulado (Ib., fragmento). Voltaire seguiu este ideal, sobretudo no Ensaio sobre os costumes e o espírito das nações. em que dá o máximo relevo precisamente ao nascimento e morte das instituições e das crenças fundamentais dos povos. Mas em toda a sua obra historiográfica o que importa a Voltaire é pôr em luz o renascimento e o progresso do espírito humano, isto é, as tentativas da razão humana para se libertar dos preconceitos e erigir-se em guia da vida social do homem. O progresso da história consiste precisamente e apenas no êxito progressivo de tais tentativas, já que a substância do espírito humano permanece inalterada e imutável. "Resulta d"e quadro, diz Voltaire (lb., cap. 197), que tudo o que concerne intimamente à natureza humana se assemelha de um extremo ao outro do universo; que tudo o que pode depender dos costumes é diferente e se assemelha apenas por acaso. O império do costume é muito mais vasto do que o da natureza; estende-se aos hábitos e a todos os usos, e expande-se na sua variedade por todo o universo. A natureza manifesta assim a sua unidade: estabelece por toda a parte um pequeno número de princípios invariáveis, de modo que o fundo é em toda a parte o mesmo, mas a cultura produz frutos diversos". Na verdade, o que é susceptível de progresso não é o espírito humano nem a razão, que é a essência dele, mas sim o domínio que a razão exerce sobre as paixões em que se radicam os preconceitos e os erros. A História apresenta-se assim a Voltaire como história do iluminismo, do esclarecimento progressivo que o homem faz de si mesmo, da progressiva descoberta do princípio racional que o rege; e implica uma alternância incessante de períodos sombrios e de renascimentos.
O conceito voltairiano da História liga-se estreitamente ao iluminismo, porque, na realidade, não é mais do que a historicização do iluminismo, o seu reconhecimento no passado. Mas com isto não se pretendeu aniquilar a problematicidade da História, e Voltaire sente-se ele mesmo um instrumento daquela força libertadora da razão, cuja história pretende descrever.
PSICOFILOSOFO
FONTE
História da Filosofia
Volume sete
Nicola Abbagnano
DIGITALIZAÇÃO E ARRANJOS
Ângelo Miguel Abrantes
(segunda−feira, 30 de Dezembro de 2002)
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME VII
TRADUÇÃO DE: ANTóNIO RAMOS ROSA ANTóNIO BORGES COELHO
CAPA DE: J. C.
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO
TIPOGRAFIA NUNES
R. José Falcão, 57−Porto
EDITORIAL PRESENÇA * Lisboa 1970
TITULO ORiGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA
Copyright by NICOLA ABBAGNANO
Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL
PRESENÇA, LDA. − R. Augusto Gil, 2 cIE. − Lisboa
Desde o primeiro momento que entrei no mundo da filosofia, como Sartre, Voltaire, Russuel, este foi o que mais me impressionou pela "medida certa" em que coloca seus argumentos e conceitos. Voltaire vai à fundo, desde a cadeia alimentar, quando a ausência de Deus, sem disconsiderá-la.
ResponderExcluirEle não se intimida com posições opostas. Ele é claro em afirmar que a vida deve ser vivida de forma serena, senão, não há motivação para continuar.
Quando ele se refere à história do espírito humano ele divide o joio do trigo que liga-se estreitamente ao iluminismo, dando valor imenso na História, no passado.
Cristina Padilha Reynaldo Alves