quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O ILUMINISMO FRANCÊS

Voltaire traz o iluminismo da Inglaterra para a França, já bem disposta para assimilá-lo e valorizá-lo, escrevendo as famosas Lettres sur les Anglais. E logo se desperta na França uma verdadeira anglomania: pelo constitucionalismo inglês, pelo livre pensamento, pela ciência nova, por Locke e Newton. Assim, se a terra de origem do iluminismo é a Inglaterra, a sua terra clássica é a França. Aí assumirá aquele caráter extremado e difusivo pelo qual o iluminismo ficará definitivamente individuado.

O traço específico do iluminismo francês é o culto da razão, a deusa razão da revolução francesa. A razão (humana) deve dominar acima de tudo e acima de todos, déspota absoluta. Daí a guerra a qualquer atividade e instituição que não sejam puramente racionais, à fantasia, ao sentimento, à paixão; às desigualdades sociais, porque a razão é universal; ao estado, quando conculca os direitos naturais do indivíduo; às divisões nacionais e à guerra; à história e à tradição em geral, em que a razão certamente não domina. No campo social, econômico, político, religioso, tudo isto levará à demolição, à destruição da ordem constituída. É o que fez desabusadamente e desapiedadamente a revolução francesa.


Se o iluminismo demole toda a história, julga, todavia, realizado o seu ideal racional no começo da humanidade, no homem primitivo para o qual se deverá, ou mais ou menos, voltar. E se ele demole toda religião positiva, inclusive o cristianismo, e, em definitivo, também a religião natural de um Deus transcendente, substitui, todavia, a esta religião a religião humanista e imanentista da razão, cujo reino, porém, se encontra neste mundo e na vida terrena.


Os Homens e os Problemas


 Encyclopédie ou dictionnaire raisonné
des sciences,
A obra fundamental do iluminismo francês e europeu, em geral, é a Enciclopédia: Enciclopédie ou dictionaire des sciences, des arts et des métiers. Foi publicada entre 1751 e 1780, em 34 volumes. Foi dirigida por João D'Alembert (1717-1783), autor do famoso Discours préliminaire, e por Denis Diderot(1713-1784) autor também de alguns escritos filosóficos - Pensées sur l'interprétation de la nature (1754), etc. Entretanto colaboraram na enciclopédia os iluministas mais famosos, chamados por isso enciclopedistas. Entre eles Voltaire e Rosseau. O movimento dos enciclopedistas foi um poderoso meio para a difusão e vulgarização das idéias iluministas, na França e no estrangeiro.


A figura dominante do iluminismo francês é Francisco Maria Arouet, dito Voltaire (1694-1778). Viveu em Londres entre 1726 e 1729, e aí escreveu as famosas Lettres sur les Anglais, trazendo para a França o iluminismo. Caído na desgraça do Rei e da Corte da França, foi acolhido (1750-1753) por Frederico II, em 1755, retirou-se para Ferney, perto de Genebra, daí dominando o mundo da cultura européia. Entre as suas obras, as que mais interessam à filosofia, são: Lettres sur les Anglais (1734); Métaphysique de Newton (1740); Éléments de la Philosophie de Newton (1741); Candide ou de L'optimisme (1756); Dictionnaire Philosophique (1764); Réponse ou Système de la nature (1777).


Pelo que diz respeito ao problema filosófico em geral, o iluminismo francês adere ao empirismo de Locke desenvolvido no sensismo de Condillac, ou até no ceticismo. Pertence a esta última tendência Pedro Bayle (1647-1706), autor do Dictionnaire Historique et Critique, meio eficaz de difusão do iluminismo antes da grande enciclopédia. Bayle propagou a incredulidade pela Europa toda, sustentando a irracionalidade da Revelação: mesmo contra a própria intenção do autor, que pretendia mostrar a necessidade de se apoiar na Fé em face dos máximos problemas, sendo a razão humana impotente para solucioná-los.


Assim, o mecanismo (empirista e racionalista) é levado até o materialismo por La Mettrie e D'Holbach, atacados por Voltaire.


Julião Offrai de La Mettrie (1709-1751) é o autor do famoso livro L'homme machine; o barão Teodorico D'Holbach (1723-1789), um alemão que viveu em Paris, é o autor do não menos famoso Système de la nature, onde o materialismo se manifesta em cheio.


Acerca do problema religioso, a atitude iluminista é decididamente hostil à igreja católica e se propõe a si mesma esmagá-la (écraser l'infâme): quer admita uma religião natural, com a crença em Deus, na imortalidade da alma, nas sanções ultraterrenas, como sendo necessárias para a conservação da ordem moral e política, segundo o ideal deísta (Voltaire); quer chegue até ao ateísmo e ao hedonismo, como, por exemplo, a corrente iluminista chefiada por Cláudio Helvetius (1715-1771), autor do livro De l'Esprit.


Carlos de Secondat,
Barão de Montesquieu
Pelo que concerne aos problemas sociais e políticos, enfim, para os quais o iluminismo tinha naturalmente um interesse especial, manifestam-se também duas atitudes: a do assim chamado despotismo iluminado, isto é, do absolutismo racional, para o bem dos povos e da humanidade - acredita-se na razão, mas não no povo que se quer elevar. Daí a necessidade da força a serviço da razão. A outra atitude ou tendência é a que deriva do liberalismo constitucional. Esta corrente, pelo contrário, manifesta confiança no povo ou, melhor, na burguesia, desejosa e capaz de liberdade. Característica desta concepção política é a divisão absoluta dos poderes supremos: legislativo, executivoe juduciário. O maior expoente dessa corrente é Carlos de Secondat, Barão de Montesquieu (1689-1755). É o autor das Lettres persanes, das Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence, e do Esprit des lois. Nestes escritos se manifesta um racionalismo iluminista temperado, desenvolvido em sentido historicista, concreto, pelo sentido de variedade das leis em relação às condições dos povos.

Jean-Jacques Rosseau

A obra de Rosseau (1712-1778) que foi mal compreendida e que ainda o é nos meios do catolicismo tradicional, na realidade representa uma reação espiritualista contra a filosofia das luzes e o otimismo dos enciclopedistas, desses filósofos do "conventículo holbáquico" que ele destacava e pelos quais era odiado.


Em seu primeiro livro, Discurso sobre as Ciências e as Artes, ele escreve para responder a uma questão que a Academia de Dijon colocara em concurso: Rosseau declara-se inimigo do progresso. Para ele, o progresso das ciências e das artes tornou o homem vicioso e mau, corrompendo sua natureza íntima. Freqüentemente se resume a tese de Rosseau aos seguintes termos: o homem é bom por natureza, a sociedade o corrompeu. Não se fará, no Emílio, o campeão de uma pedagogia naturalista que confia nas tendências espontâneas da criança, que atende às suas necessidades mais profundas, ao invés de submetê-la a constrangimentos difíceis? (Nesse sentido, a pedagogia da chamada Escola Nova, fundada nas tendências e nos centros de interesse espontâneos da criança, é uma pedagogia rousseauniana: "Toda lição, dirá Dewey em nossos dias, deve ser uma resposta").


Mas seria uma grave erro confundir o "naturalismo" de Rosseau com o dos filósofos das luzes. Na realidade, a moral e a filosofia de Rosseau, tais como se encontram em seu romance A Nova Heloísa (1761) e na Profissão de fé do Vigário saboiano, peça mestra do Emílio (1762), recaem nos temas do espiritualismo mais tradicional. É certo que a profissão de fé do Vigário suscitou as iras dos poderes públicos e das igrejas constituídas. A obra será solenemente queimada, um mês apenas após sua publicação, em Paris e em Genebra. O arcebispo de Paris condena-lo-á em célebre ordenação (perseguido por toda parte, Rosseau só encontra refúgio na Inglaterra, junto a Hume, com quem, aliás, se desentenderá pouco depois). É censurado por escolher a religião natural (aquela que o homem encontra no próprio coração) e rejeitar a religião revelada. Não há dúvida de que ele declara que todas as religiões são boas e que cada crente pode conseguir a salvação na sua (o que é contrário ao que, na época, era pensado nas igrejas católicas e protestantes). Também é certo que ele desconfia das interpretações que a Igreja possa dar dos Evangelhos ("quantos homens entre mim e Deus!"). No entanto, prende-se ao ensinamento de Jesus, cujos atos, diz, são melhores atestados do que os da vida de Sócrates. Rosseau adota o dualismo moral popular. "Somos tentados pelas paixões e detidos pela consciência", essa consciência moral que, segundo ele, é uma exigência inata em nós e não, como dizia Montaigne, o reflexo do costume. Para Rosseau, os maus triunfam neste mundo, ao passo que o justo é infeliz. Todavia, a justiça divina recompensará os bons ("a vida da alma só começa com a morte do corpo") e punirá os maus que são culpados de serem assim ("dependia deles não se tornarem maus"). A Nova Heloísa apresenta-se como uma apologia da religião e da moral, dessa "lei divina do dever e da virtude" em nome da qual a paixão amorosa se sacrifica heroicamente.


A teoria política de Rosseau, exposta no Contrato Social, aproxima-se bastante, aparentemente ao menos, das idéias dos filósofos racionalistas. Nessa obra, Rosseau pesquisa as condições de um Estado social que fosse legítimo, que não mais corrompesse o homem. O problema que ele coloca recai no de Locke ou de d'Holbach: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens da cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, porém, senão a si próprio e permaneça tão livre quanto antes; ete, o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social". Todavia, o pacto social não tem por fim conciliar todos os interesses egoístas, mas antes depreender (o que é possível com a maioria das vozes, nos debates do povo reunido) uma vontade geral. Esta última faz abstração dos interesses divergentes e das paixões de cada um para só cuidar do bem comum. Entenda-se bem: "cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante da vontade geral que ele tem como cidadão". Por conseguinte, nessa vontade geral descobriremos outra coisa que não o interesse, o desejo de felicidade, etc. Encontraremos aí, no fundo, a regra da consciência, esse juízo inato do bem e do mal que cada um descobre em si mesmo, quando dissipa seus desejos egoístas "no silêncio das paixões".


A Consciência segundo Rosseau


Não tiro dessas regras, os princípios de uma alta filosofia, mas as encontro, no fundo do meu coração, escritas pela natureza em caracteres indeléveis. Basta-me consultar-me sobre o que quero fazer; tudo o que sinto ser bem é bem e tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência; e só quando se comercia com ela é que se recorre às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos os cuidados é o consigo mesmo: todavia, quantas vezes a voz interior nos diz que, ao fazer nosso bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e lhe resistimos, escutando o que ela diz dos nossos sentidos, desprezamos o que diz aos nossos corações; o ser ativo obedece e o ser passivo ordena. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. É espantoso que muitas vezes essas duas linguagens se contradigam? A qual delas se deve ouvir? A razão freqüentemente nos engana, não temos senão o direito de recusá-la; mas a consciência nunca engana; é o verdadeiro guia do homem: ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo(¹) ; quem a segue, obedece a natureza e não teme se perder. Este ponto é importante, proseguiu meu benfeitor, vendo que eu ia interrompê-lo: esperai que eu me detenha um pouco mais a esclarecê-lo.


A moralidade de nossas ações está no juízo que delas fazemos. Se é verdade que o bem seja bem, ele o deve ser tanto no fundo de nossos corações quanto em nossas obras, e o maior prêmio da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondade moral concorda com nossa natureza, o homem não poderia ser são de espírito, nem bem constituído, se não fosse bom. Se não concorda, então o homem é naturalmente mau e não o pode deixar de ser sem se corromper; a bondade não seria senão um vício contra a natureza. Feito para prejudicar seus semelhantes, assim como o lobo para devorar sua presa, o homem humano seria um animal tão depravado quanto um lobo desprezível; e a virtude só nos deixaria remorsos.


Penetremos em nós mesmos, oh, meu jovem amigo! Examinemos, deixando à parte qualquer interesse pessoal, para onde nossas tendências nos conduzem. Qual o espetáculo que mais nos envaidece, o dos tormentos ou o da felicidade de outrem? Que é que nos é mais doce fazer e que nos deixa agradável impressão após o ter feito, um ato benfazejo ou um ato malfazejo? Por quem vos interessais mais em vossos teatros? É com a maldade que vos divertis? É com seus autores punidos que derramais lágrimas? Tudo nos é indiferente, dizem eles, exceto nosso interesse; quando, ao contrário, as doçuras da amizade humana nos consolam em nossas penas; e mesmo em nossos prazeres, estaríamos demaisados sós e seríamos demasiados miseráveis se não tivéssemos com quem os dividir. Se nada existe de moral no coração do homem, de onde, então, provêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esses transportes de amor pelas grandes almas. Esse entusiasmo da virtude, qual a relação que ele tem com nosso interesse privado? Por que eu preferiria ser Catão, que rasga as entranhas, do que César triunfante? Tirai de nossos corações esse amor ao belo, que tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas paixões vis sufocaram esses sentimentos deliciosos em sua alma estreita; aquele que, à força de se concentrar dentro de si, acaba por amar apenas a si mesmo, não mais tem transportes e seu coração congelado não mais palpita de alegria, assim como uma doce trnura nunca umedece seus olhos; não goza mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais, já está morto.


(¹) A filosofia moderna, que só admite o que explica, não deixa de admitir essa obscura faculdade chamada instinto que parece guiar os animais, sem qualquer conhecimento adquirido, no sentido de algum fim. O instinto, segundo um de nossos mais sábios filósofos (Condillac), nada mais é do que um hábito privado de reflexão, mas adquirido por reflexão; a maneira pela qual ele explica esse progresso obriga-nos a concluir que as crianças refletem mais do que os adultos, paradoxo muito estranho para valer a pena ser examinado. Sem entrar aqui nessa discussão, pergunto que nome devo dar ao ardor com que meu cão faz guerra às toupeiras que não come, à paciência com que as guarda, jogando-as por terra no momento em que saltam, matando-as em seguida para deixá-las ali, sem que jamais alguém o tenha dirigido para essa caça ou lhe ensinado que existem toupeiras. Pergunto ainda, e isso é mais importante, por que, na primeira vez em que ameacei esse mesmo cão, ele se atirou de costas no chão, as patas dobradas, numa atitude suplicante e mais própria para me comover, postura em que não permaneceria se, sem me deixar dobrar, eu lhe batesse. Quê?! meu cão, pequenino, mal acabado de nascer, já teria adquirido idéias morais? Sabia o que era clemência e generosidade? Em virtude de que luzes adquiridas esperava me acalmar, abandonando-se assim à minha discrição? Todos os cães do mundo fazem quase o mesmo no mesmo caso, e nada falo aqui que não possa ser verificado por todos. Que os filósofos, que tão desdenhosamente rejeitam o instinto, queiram explicar esse fato apenas pelo jogo das sensações e dos conhecimentos que elas nos fazem adquirir; que o expliquem de maneira satisfatória para todo homem sensato; então não teria mais nada a dizer e não mais falarei de instinto.
Leia mais: http://www.mundodosfilosofos.com.br/rosseau.htm#ixzz1aaZILf2A

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