Honoré Balzac, morto há cento e cinqüenta anos, foi um dos mais extraordinários e completos escritores de todos os tempos. Até os nossos dias qualquer um se impressiona com a vastidão e diversidade da sua obra, que, na tradução para o português, feita no Brasil dos anos 50 e 60, chegou a 17 volumes. Quem abrir qualquer um dos livros da Comédia Humana terá um mundo inteiro diante de si.
A Iniciação de um Romancista
Em Paris, nos primeiros anos da década de 1820, a sombra de homem esgueirava-se na noite alta entre o Boulevard du Pontaux-Choux e a rua Beaumarchais. Seguia desta vez os passos de um trabalhador e sua mulher. Escutava-lhes o patoá, observava-lhes os sapatos rotos, o caminhar desengonçado, sentia-lhes as privações e intuía quais seriam seus desejos. Acompanhava-os a distância, discreto como um bom fantasma, até que o casal sumia numa ruela qualquer.
Mais tarde ainda, se o clarão da Lua permitisse, tratava de alcançar o cemitério Père Lachaise, onde perambulava horas entre as tumbas daqueles mortos ilustres. Olhava para as lápides buscando inspiração. Talvez aquelas eminências do passado, abrigadas nas tumbas, indicassem-lhe mediunicamente qual o melhor caminho para atingir o coração frio daquela bela cidade, que se esparramava lá embaixo como que a seus pés. Da parte mais elevada do famoso mortuário, contemplava, ao longe, iluminadas, a Coluna de Vendôme (aquele pilar de bronze erguido por Napoleão com os canhões de Austerltiz) e a Abóbada dos Inválidos. Naquele eixo formado por aqueles dois grandes monumentos concentrava-se o tout Paris, era dali que os deuses da glória determinavam quem eles deveriam abençoar.
Balzac se profissionaliza
Cemitério Pére Lachaise |
Dando vida e corpo a essa sombra que vagava pelas ruas e cemitério de Paris do princípio do século XIX, veríamos que ele não alcançava mais de um metro e meio, era feio, com dentes horrivelmente estragados, pouco asseado e muito mal vestido. Recentemente tomara a difícil e audaciosa decisão de tornar-se um escritor profissional. O seu nome era Honoré Balzac, que, com pouco mais de vinte anos, assumira a firme determinação de "fazer com a pena o que Napoleão fizera com a espada". As estranhas caminhadas, o contato com a gente comum e o cenário bizarro, faziam parte das emanações que esperava receber para compor os personagens dos livros que pretendia escrever. Balzac inovou no seu tempo ao empresariar a si mesmo, envolvendo-se em várias iniciativas como impressor e até com notável previsão, promovendo o livro de bolso como um solução para a popularização da literatura. Nunca teve, porém, sucesso em seus saltos para além do mundo das letras. Ao contrário, só acumulou decepções e dívidas, obrigando-o a se tornar num exímio contorcionista para esgueirar-se dos credores (inclusive deixou um verdadeiro manual ensinando como escapar deles).
Em busca de gente.
Os comuns, fonte inesgotável de histórias |
Lentamente aquele jovem bisonho, gorducho, nascido em Tours em 20 de maio de 1799, e considerado quase como um palerma pelos seus companheiros de escola, transformou-se num dos maiores escritores da França. Hoje é uma glória nacional.
O Método
Balzac no Pass, em Paris |
Como método Balzac sempre procurou preceder a apresentação dos seus personagem com um pequeno ensaio descritivo, algo equivalente a mostrar um cenário onde os atores irão em breve surgir. Em seguida surgem os retratos - vistos de fora, do exterior, com o máximo de detalhes possíveis - dos tipos humanos. Técnica hiper-realista que depois foi abandonada na literatura pelo aparecimento do daguerreótipo e, em seguida, pela difusão da fotografia. As roupas usadas, a aparência (importantíssima), os gestos e as
ações revelam o caráter, até o nome do personagem define a pessoa, ou pelo menos a condiciona a um tipo de vida, a uma profissão ou gosto. O resultado foi simplesmente extraordinário, visto a amplitude e multiplicidade de figuras a quem ele conseguiu dar vida. A sociedade parecia uma imensa teia, uma colossal rede interligada por gente lutando dia a dia pela vida. Marx, em carta a Engels, confessou sua dívida para com o escritor francês porque, segundo o pensador alemão, ninguém, até então, expusera com tanto realismo e veracidade o universo capitalista e burguês. Oto Maria Carpeaux, por sua vez, disse que Balzac escrevera " o romance do dinheiro". O Aprendiz do Bacharel
Balzac, um Napoleão das Letras |
Tempos antes de decidir-se pelas letras, Balzac fizera um instrutivo estágio num escritório de advocacia. Os seus pais arrumaram-lhe uma colocação com um bacharel amigo, o senhor Guillonnet-Merville. Enquanto seus colegas de escrivaninha divertiam-se com chistes e brincadeiras sem fim, o jovem Honoré folhava maravilhado aqueles processos. Ali naquelas pastas, muitas com as folhas já amareladas pelo tempo, era todo um mundo que se lhe abria: maridos livrando-se de esposas, filhos tentando adulterar testamentos, amantes velhuscos fazendo empenhos e hipotecas em favor das jovens amantes, herdeiros em litígio de vida e morte, verdadeiras pequenas guerras em torno do dinheiro, e até um pobre coronel, de nome Chabert, uma ruína viva dos tempos do Grand Armée de Napoleão, ferido em Eylau, e que fora tratado como um fantasma inconveniente pela ex-mulher, tentando desesperadamente provar que ainda estava vivo! Aquela papelada toda foi a fonte primeira em que o escritor iniciante bebeu.
O Primeiro Sucesso
La Chabottene, na Vendéia, local histórico dos chouans |
No início, como escritor profissional, Honoré dedicou-se a porcarias, a romances góticos que ele despachava em série para as editoras, oculto num pseudônimo. Somente aos 29 anos sentiu-se em condições de vir à cena da república das letras com o seu verdadeiro nome. O livro escolhido, nos moldes de Walter Scott, era uma história que se passava nos tempos da revolução: A Bretanha em 1799 (Les Chouans ou La Bretagne en 1799). que publicou em 1829. Foi a largada de uma série memorável de romances, novelas e contos, que só se encerrou em 1847, consagrando-o universalmente como um dos mais prodigiosos, imaginativos e produtivos literatos de todos os tempos.
A Revolução Balzaquista
Catarina de Medicis, estuda por Balzac |
O Historiógrafo da Vida Privada
As paixões, uma matéria-prima |
O escritor, enfim, como quis Henry Fielding, tornava-se o historiógrafo da vida privada. Mostrou-se assim indisposto a abrigar em seus romances uma grande figura da história real. Napoleão, por exemplo, a quem devotava respeito, aparece palidamente nos começos de Uma mulher de trinta anos, comandando uma parada militar. Ele acreditava que a presença dessas personalidades magníficas como Cromwell (a quem ele dedicou uma peça), tendiam a ofuscar os demais personagens que participavam nas tramas. Nada custa especular que essa preferência dele pelo comum oposto ao excepcional ou heróico
(ou ainda revelar o heróico no que parecia ser comum), possa ser uma inconsciente aclimatação dele com a era de mediocridade que lhe coube viver. Balzac foi contemporâneo quase que por inteiro da sociedade pós-napoleônica, dominada pela rotina conservadora da Restauração (1815-1848), que banira o feito extraordinário do seu horizonte, obrigando-o a descobrir extravagâncias por de trás do balcão do burguês. Isso não o impediu, entretanto, de fazer eventuais incursões na vida da nobreza, como no seu ensaio histórico sobre Catarina de Médicis e outros livros de aventura.
Um Shakespeare e um Dante Burguês
Ao dramatizar a vida dos burgueses, mostrou que a inveja de um Iago não destruía apenas o atormentado Otelo. O mesmo estrago ela fazia ao modesto perfumista César Birotteau, em razão das manobras perversas de um balconista da sua loja. Balzac plebeizou o que Ésquilo e outros grandes áticos reservaram às dinastias gregas. O que Shakespeare e Racine atribuíam à nobreza, ele estendeu aos comuns. A grande queda, revelou ele, não era um infeliz apanágio que só ocorria a um monarca mitológico como Agamenon, ou com Édipo Rei e seus filhos, todos príncipes de sangue azul. Ela também se dava em meio à gente miúda. Eles também tinham direito ao seu quinhão na tragédia humana. Os burgueses e os pobres não deviam só aparecer na literatura como pícaros ou seres cômicos e desprezíveis (como Molière, por exemplo, os tratou no Burguês fidalgo) Cogitou-se que o título geral da sua obra - a Comédia Humana - foi-lhe inspirado diretamente pelo monumento de Dante. Da mesma forma com que o ilustre florentino desenhara um imenso afresco retratando o universo medieval, ainda que no imaginário mundo do além do cristianismo, Balzac faria o mesmo com a sociedade francesa, ainda que recorresse a pincéis de cerda torta e às tintas exageradas.
A Comédia da Sociedade Burguesa
Se Dante dividiu o seu mundo em Inferno, Paraíso e Purgatório (em total sintonia com a teologia cristã), o paisagista Balzac, no fluxo das ciências naturais, físicas e sociais do seu século, fez o mesmo com o dele. Como tudo em seu tempo encaminhavam-se para a especialização, subdividiu a sua Comédia em cenas: a da vida privada, a da vida na província, a da vida parisiense, a da vida política, militar e rural, arrematando-as ainda com dois estudos que denominou de filosóficos e analíticos.
Nela o mundo moderno inteiro se faz presente. Lá esta o banqueiro, o negociante, o libertino, o inventor, o gráfico, o poeta, o jornalista, o médico, a cortesã, o funcionário, o advogado, gente nobre e o povo comum. Mulheres soberbas, consagradas, contrapõem-se a verdadeiras feiticeiras, quase bruxas. Homens honrados em choque com gente vil. E, vagando nas sombras deste mundo, a figura sinistra e fascinante de Vautrin (inspirado no policial Vidoc, um ex-criminoso), um dos seus maiores achados literários e seu alter ego, um antigo chefe de quadrilhas regenerado, um filósofo cínico, arguto observador da verdadeira teia de aranha que se tornara a sociedade parisiense da primeira metade do século XIX (personagem que teria inspirado uma boa parte dos detetives dos romances policiais que surgiram em seguida).
"Sabes como fizeram seu caminho até aqui? Pelo brilho do gênio ou pelo recurso da corrupção. É preciso penetrar nessa massa de gente como uma bala de canhão, ou devastar como uma peste. A honestidade não serve a ninguém. A corrupção predomina, o talento é raro. Sendo a corrupção a arma da mediocridade que abunda, você a sentirá por toda a parte."
Filosofia de um Cínico
"Sabes como fizeram seu caminho até aqui? Pelo brilho do gênio ou pelo recurso da corrupção. É preciso penetrar nessa massa de gente como uma bala de canhão, ou devastar como uma peste. A honestidade não serve a ninguém. A corrupção predomina, o talento é raro. Sendo a corrupção a arma da mediocridade que abunda, você a sentirá por toda a parte."
Morte
Balzac, sacerdote da literatura |
Quando Balzac morreu, em 18 de agosto de 1850, com o coração esgotado pelo excesso de trabalho e por doses cavalares de café fortíssimo (o mooca que ele mesmo preparava), deixara mais de 50 títulos conhecidos e um universo ficcional povoado por mais de dois mil personagens! O homem-fábrica exauriu-se aos 51 anos de idade quando recém-alcançara um dos grandes feitos da sua vida amorosa, ter casado com madame Hanska, a bela viúva, uma dama polonesa que era sua fã e com quem correspondeu-se diariamente por muitos anos. Há um Museu Balzac no bairro de Passy, em Paris 16e., na rua Raynouard 47, última residência em que ele viveu. É um curioso prédio de três andares, nada suntuoso, onde o visitante entra pelo terceiro andar podendo então intimar-se com a oficina de onde saía aquela incrível e aparentemente inesgotável produção. Certa vez uns amigos presentearam-no com um conjunto de penas para escrever e acompanhadas por um belo tinteiro, mas Balzac nunca fez uso deles, mantendo-se fiel a sua gasta pena que parece ter-se extraviado durante os embaraços do enterro. Ela foi a alavanca com que ele construiu e moveu um mundo próprio, colocando-o no panteão dos grandes homens de letras de todos os tempos.
Obras Principais de Balzac
1831
La Peau de chagrin (A pele do onagro)
1833
Eugénie Grandet (Eugênia Grandet)
1835
Le Père Goriot (O pai Goriot)
1837-1843
César Birotteau (César Birotteau)
Illusions perdues (Ilusões perdidas)
1838-1847 Balzac e M.me. Hanska (caricatura)
1844
Les Paysans (Os camponeses)
1846
La Cousine Bette (A prima Bette)
1847
Le Cousin Pons (O primo Pons)
(*) Praticamente toda a obra literária de Balzac foi traduzida e editada sob os auspícios da Editora Globo de Porto Alegre, num monumental trabalho editorial organizado por Paulo Rónai.
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