O psicólogo na UTI: reflexões sobre a saúde, vida e morte nossa de cada dia
As idéias apresentadas neste ensaio são frutos da dissertação de Mestrado em Psicologia e Práticas Sócio culturais, realizada no período de 1995-1998 (Oliveira, 1998). Certamente, marcadas por outras críticas, reflexões, encontros e desencontros.
O que é viver? O que é sobreviver? O que é viver após passar em uma Unidade de Tratamento Intensivo (de agora em diante UTI), por uma situação limite, entre a vida e a morte? Aqui, o campo delimitado para se pensar nessas questões será o da saúde, porque foi observando e participando das práticas intensivistas1 que as perguntas surgiram.
Estudar singularidade e subjetividade frente à saúde, colocando em jogo a capacidade humana de enfrentar ameaças, é tarefa difícil. Antes, é preciso admitir a possibilidade de objetivar a singularidade e a subjetividade. Quando assim se faz, há problemas a enfrentar. O primeiro é definir singularidade.
Para se buscar tal definição, voltar-se-á às práticas intensivistas. Na UTI tudo é muito urgente e grave. Decat de Moura (1996:10), ao tratar a singularidade nesse espaço, assim escreve: “Na urgência, o sujeito é lançado no estado inicial de desamparo, estado que pode repetir-se em qualquer momento de vida, revelando a precariedade da condição humana. O mundo do humano é estruturado em palavras e no mundo simbólico da linguagem, enquanto seres falantes, os homens são iguais. Sua "singularidade" se coloca no campo do objeto. Singularidade “sublime” que confere ao TRIEB uma satisfação diferente do seu alvo “natural”.
Para melhor esclarecer que singularidade está relacionada com o objeto, recorda-se que o bebê, quando se vê frente ao seu “primeiro desamparo”, ainda enquanto infans, vai em busca de um objeto para se satisfazer.
E subjetividade, do que se trata? No primeiro momento, encontrou-se uma definição satisfatória em Guattari. Em geral, em Psicologia, quando se fala em subjetividade, logo aparece a idéia de algo apenas específico do indivíduo, próprio e particular, aqui compreendido como singularidade, mas Guattari, ao definir subjetividade, confere-lhe um estatuto coletivo. Em “Revolução molecular” (1977/1987), ao tratar do movimento das minorias, da autogestão dos hospitais, das rádios livres, dos partidos políticos, da Psicanálise e suas metamorfoses, sugere a emergência de novas subjetividades. Preocupado com a ordem capitalista, observa o controle que o capital exerce não só aos níveis econômico e social, mas também ao da subjetividade dos indivíduos, sendo que especialmente a cultura exerce um papel de sujeição subjetiva. O que a subjetividade capitalística produz é justamente a homogeneização dos indivíduos, normatização e massificação de pensamentos, seguindo um sistema de valores. Essa ordem é “projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto, etc.” (Guattari & Rolnik, 1986: 42).
Avançando em seus estudos, uma definição de subjetividade proposta pelo autor é: conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (Guattari, 92: 19).
É nessa perspectiva da subjetividade, que se desenvolve no socius e junto a intensidades pré-verbais (lógica do afeto), que se vai enfrentar a questão de viver em momentos de situações limite, como estar entre a vida e a morte em uma UTI. Nesses momentos, produções originais de subjetividade podem intervir nos processos de adoecimento e recuperação, levando em consideração a interação do paciente com o espaço e com a assistência à sua saúde, a partir da própria postura de vida (classe social, história de vida, outros acontecimentos).
Singularidade aqui aceita e subjetividade definida a partir de Guattari, a princípio parecem entrar em conflito, pois este se opõe a alguns conceitos da Psicanálise. Entretanto, da singularidade à subjetividade há um caminho a percorrer e uma proposta de coexistência. Aposta-se que a antítese entre singular, subjetivo e objetivo não existe.
Através dessas noções, percebe-se que, para abordar os modos saudáveis que permitem ao homem enfrentar o seu viver em uma UTI, é imprescindível ter atenção para com um sujeito biológico, vivente, dotado de inconsciente, que constitui um social e se constitui também em um social.
Ao se observar em uma UTI as práticas de saúde, facilmente são perceptíveis níveis diferentes e interativos de atendimento. Corpos humanos sofrem e, nas palavras de Benoit (1989:78), “o sofrimento do corpo é relativo não apenas à própria doença, mas também à mobilização do mundo arcaico do sujeito que funciona na própria base de sua estrutura”. Com essa noção, pode-se averiguar os objetos da Medicina em interação com a singularidade e subjetividade de cada paciente.
Na prática médica, além de objetos concretos, como os medicamentos, há de se pensar no medicinal, que é tudo aquilo que serve para consolar os infortúnios da existência: atos, ações, remédios que fazem cessar males ou mesmo diminuir um sofrimento, levando-se sempre em conta as épocas e culturas. O medicinal evoca uma função, a de cuidar, e está presente tanto em quem trata como em quem é tratado. Vale prestar atenção para o fato de que nem sempre o medicinal do paciente funciona em harmonia com o medicinal do profissional de saúde. A partir da realidade desses vínculos, na UTI nossa atenção volta-se para o uso de aparelhos (objetos medicinais?) que podem manter a vida.
O desenvolvimento técnico das últimas décadas possibilitou suporte a órgãos humanos e funções vitais. Na UTI, precisamente, aliadas à luta pela “imortalidade”, estão as possibilidades de progresso do conjunto da ciência e da técnica, que não se dissociam das possibilidades de “mutação” do homem em todos os seus níveis de vida: biológico, físico, psíquico, social, político, etc. Esse fato provoca reflexões acerca do viver que torna possível a “manutenção” da vida. Será uma outra sociedade, uma outra liberdade, um outro modo de viver para suportar uma prática que adia a morte? (Morin, 1997)
O Adiamento da Morte?
Os homens nascem. Os homens morrem. Assim continua a acontecer, mesmo após todas as transformações da humanidade durante o decorrer da sua história. Essas afirmativas parecem óbvias, mas não são. Como questões, produzem minuciosas discussões filosóficas, antropológicas, psicológicas, míticas e práticas.
No fundo desse silêncio coletivo, os fantasmas individuais fazem suas danças macabras, roubando aos homens a consciência de seus limites, fazendo com que se acreditem imortais, por isso definitivamente presos ao tempo imobilizado” (Rodrigues, 1983, 202). Por que será que isto acontece? O que a morte provoca quando se pára por alguns minutos para se pensar nesse fenômeno e nos estudos realizados em torno dele?
Na escala filogenética, o homem é o único animal que se sabe mortal. A consciência da morte faz parte das conquistas constitutivas dos homens. “Já não é mais uma questão de instinto, e sim a aurora do pensamento humano, que se traduz por uma espécie de revolta contra a morte” (Morin, 1997:23). A consciência da morte e o horror que ela provoca são marcas da humanidade.
Engana-se, no entanto, quem pensa que a morte sempre foi compreendida da mesma maneira pelos homens. As diversidades marcam essa compreensão em tempos e lugares diferentes. A proposta de olhar essas situações mais de perto reserva um momento de reflexão por detrás dos panos. Inicialmente, três imagens podem ser apresentadas sobre as diversas maneiras de morrer. Imagens, aqui compreendidas, emergem das mais variadas formas, na medida em que são apreendidas nas diversas práticas sócioculturais. O momento exato da morte será o ponto de referência para possíveis interpretações.
A primeira imagem que se ressalta é a da boa morte pela boa vida. Ou seja, para se morrer de uma forma tranqüila, precisa-se viver bem-aventuradamente. Não basta o arrependimento na hora da morte. Quanto a esta, Ariès (1977/1990: 329) afirma que “não é, pois, no momento da morte nem na proximidade da morte que se torna preciso pensar nela. É durante toda a vida”. Essa imagem é remetida a uma época ou a uma prática social na qual a morte era esperada a qualquer momento, e meditar sobre ela fazia parte da orientação da vida. Pode-se considerar que, através dessa doutrina, a morte estimulava o estudo do ser a partir da fragilidade da vida. As pessoas não se desesperavam, mesmo frente ao perigo iminente. Para um homem preparado, todos os momentos se assemelhavam aos da partida.
Pode-se considerar que a morte era racionalizada. Quem fosse justo teria uma boa morte. Vida e morte ficavam bastante ligadas. A morte era celebrada em clima de festa. Era vivida como parte integrante da vida. Nessa imagem, ela atinge o grupo social do qual o morto faz parte. É um fato social e público.
A sociedade, nesse caso, expulsa a morte. Nada mais anuncia ter acontecido alguma morte na cidade. Como resquício da morte anunciada com carros mortuários e avisos nas ruas, ainda resta, nos jornais e revistas, um espaço mínimo para divulgação de óbitos, que quase ninguém lê. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse mais. Apenas alguns homens de Estado, ou mesmo, públicos, têm sua morte anunciada que, a partir de algumas semanas, é esquecida. A morte surge como um desaparecimento.
Nessa situação criada diante da morte, o local ideal para se morrer passou a ser o hospital. Lá a morte pode escapar da publicidade e passa a ser solitária. Há toda uma disciplina a regular o mundo da assepsia e da higiene. O doente e possível morto, por ser inconveniente, passa a ser escondido do mundo e da sua família, que desejam e necessitam continuar uma vida normal. O silêncio passa a marcar essas mortes. Passa-se a querer ludibriá-la.
Parece que a essas imagens tem-se seguido outra, que de alguma forma tenta integrar as apresentadas acima. Na primeira semana de junho de 1996, uma notícia despertou curiosidade nos meios de comunicação. Morreu o psicólogo Timothy Leary, que na época estava obcecado por computadores. Ele sofria de câncer na próstata desde 1995. Planejava cometer suicídio e transmiti-lo ao vivo pela Internet, na qual mantinha uma página com o relatório semanal de seu estado de saúde. Seu projeto não se concretizou. Ele veio a falecer, cercado por amigos e parentes, em sua cama. O momento de sua morte foi gravado por câmaras de vídeo para ser mostrado na Internet. (Oliveira, 1996)
Impossível saber dessa notícia sem sentir um certo estranhamento. Leary não morreu no hospital, como geralmente tem sido um hábito desses últimos anos, principalmente se a pessoa já está doente. E mais do que isso, ele fez sua morte anunciada utilizando a Internet. Será que essa forma de morrer desperta outra imagem sobre a morte ao lado da tecnologia, como os computadores, Internet e por que não, aparelhos encontrados nas UTIs?
São marcas a serem investigadas, a constatar que, entre a vida e a morte, há uma produção imaginária incontável, que tenta dar conta da precariedade da existência.
O Lidar com a Morte
A espécie humana, ao lidar com a morte, apreende que ela não é apenas uma realidade biológica à qual está necessariamente sujeita, como se supõe para os outros animais sexuados que povoam a biosfera. Para essa espécie, a questão se apresenta diferente. Observa-se que alguns elementos comuns cercam o término da existência, isto é, a morte.
Mesmo em épocas diferentes e, às vezes, de maneira nada semelhante, a princípio, em torno da morte é celebrada uma cerimônia, que marca solidariedade do indivíduo com sua espécie e comunidade. Por mais que se queira negar, a vida de um ser humano e sua morte não são apenas um destino individual. Trata-se ainda de um elo que se estende ao gênero humano. O momento da morte também nunca se mostra como um fenômeno neutro. Causa um mal-estar e parece uma desgraça. Também depende de condições mal conhecidas do além, fazendo com que se busquem continuidades mesmo chegando ao fim. E, se entre o momento da morte e o fim da vida existe um intervalo, faz parte do acontecimento um estado intermediário. “Os ritos da morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca o fantasma do aniquilamento”. (Rodrigues, 1983: 21).
Morin (1997), ao escrever sobre o indivíduo, a espécie e a morte, evidencia que a consciência humana da morte supõe uma ruptura na relação indivíduo-espécie. Conforme se foi subindo na escala animal, houve “uma promoção da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à individualidade “(Morin, 1997: 56), mas quase sempre isto é recalcado. Há sempre a busca de uma razão para a morte: doença, velhice, azar, acidentes. O que não se aceita é que seja uma necessidade (da espécie?).
Observaram-se pontos em comum, da espécie humana, ao lidar com a morte, mas não podemos esquecer que a estreita relação entre vivos e mortos sofre mudanças no decorrer do tempo.
Nas sociedades industriais, a morte passa a ser um acontecimento agressivo, e “uma doença largamente considerada como sinônimo de morte é tida como algo que se deve esconder (...) para as pessoas que estão morrendo, é melhor que sejam poupadas dessa notícia, (...) a boa morte é a repentina...”. (Sontag, 1984: 12-13) Vale lembrar que, antes, a morte súbita era para os covardes. Morrer em paz era poder completar a sua obra e se despedir dos seus. Ao final do século XX, um século não só marcado por duas guerras mundiais, mas também por inovações e mudanças que ocorreram rapidamente, em alguns momentos e lugares os costumes e regras se perderam.
O mito da imortalidade do homem, e não mais de sua alma, ganha força. No capitalismo contemporâneo, a morte se faz presente nas coisas: produz-se “lixo”2 todo dia, pelo menos na chamada civilização cristã ocidental. A imortalidade dos homens e a mortalidade das coisas do mundo ficam diretamente proporcionais. Os dois fatos se relacionam ao modo como o homem se apropria da dimensão do real e da dimensão temporal na sociedade contemporânea - o efeito é um só: o esfumaçamento do finito (Brasil, 1995).
Cada vez mais realizam-se pesquisas voltadas para obtenção de aparelhos que possibilitem manter vivos os homens, e até mesmo para o congelamento dos corpos, tentando parar o tempo e apostando no prolongamento da vida. Também iniciam-se as experiências de clonagem amplamente divulgadas nos meios de comunicação. “É sem dúvida, por não ter podido resolver o problema do fim ( simplesmente porque o problema não tem solução) que o homem se voltou para o começo”. (Baudrillard, 1992: 135). Ao ser silenciada a morte, a vida passa a ser enaltecida como valor supremo. Uma morte foi inventada, fora do tempo real do acontecimento, projetada para o futuro, com aparelhos que conseguem prolongar a vida. Criou-se a ilusão de dar crédito à imortalidade perante a vida. Desrespeitou-se a morte como limite. Impôs-se um modo fantasmático de vivenciá-la (Oliveira, 1997). Também agora se quer dar assistência ao suicídio reforçando a abolição do limite do tempo e subordinando a morte ao tempo da vontade. Mais uma vez, a busca é da imortalidade.
A morte fantasmática vai apresentar duas faces: a do futuro sempre adiado e a do presente não efetivado. Ao se negar o tempo da morte, disseminado nas coisas da vida, a diferença entre a morte e a vida se desmancha no ar. Talvez o modo dominante e naturalizado da subjetivação da morte atualmente seja o da morte fantasmática. Tanto frente ao futuro sempre adiado, como no presente não efetivado, a vida vai sendo seqüestrada pela morte como fantasma (Brasil, 1995).
A UTI, para Onde se Vai?
Nos dias atuais, as UTIs existentes, de modo geral, são locais onde se internam doentes graves que ainda têm um prognóstico favorável para viver. Nesse local, são atendidos casos de pessoas que se encontram em uma situação limite (entre a vida e a morte) e necessitam de recursos técnicos e humanos especializados para sua recuperação. São espaços não muito grandes, com divisões internas semelhantes: sala onde ficam os pacientes, recepção, sala de reunião, quartos de descanso dos profissionais, banheiro e copa. Eles são reconhecidos e legitimados pelos médicos como um ambiente onde são utilizadas técnicas e procedimentos sofisticados para reverter distúrbios que colocam em risco vidas humanas.
Nas UTIs, desde sua implantação, foi dada ênfase aos recursos técnicos existentes. Cada vez mais são realizados estudos para melhorar os equipamentos. No entanto, essa tecnologia, quando considerada isoladamente, pode ficar bastante limitada. Os recursos humanos, formados por profissionais intensivistas, precisam também ser aperfeiçoados.
No início, as UTIs eram reservadas a pacientes com infarto agudo; depois, com a criação de equipamentos mais sofisticados, passou-se a cuidar também de pacientes portadores de insuficiência respiratória, insuficiência renal aguda, hemorragia digestiva alta, em estado de coma, estado de choque, e diversas outras situações igualmente graves.
Os profissionais que ali trabalham são altamente especializados e recebem treinamentos especiais. Nas UTIs, podem ser encontrados profissionais com diferentes formações: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e psicólogos. Certo é que, em poucos locais se encontra uma equipe de trabalho formada com todos esses profissionais.
Ao se olhar para os doentes nesse local, é possível observar a aplicação do mesmo processo de despojamento que Goffman (1961/1974) descreve a respeito do processo de admissão no serviço militar, nos conventos e manicômios. Os múltiplos comportamentos exigidos dos doentes ao longo da hospitalização revelam esse despojamento. Assim, o processo de internação e funcionamento da UTI chama atenção por constar de alguns rituais.
No momento da ida para a UTI, começa a se evidenciar a rotina dessa unidade hospitalar. A primeira ação normalmente a ser realizada é a da “perda” das roupas, caso ainda não tenham sido retiradas em outra unidade. Esse processo de admissão remete a outras perdas, como a da saúde e a de “direitos”. Outros procedimentos, da competencia da equipe, também podem ser observados colher dados a respeito da doença, verificar o estado clínico de quem está sendo atendido, guardar os pertences pessoais. Além disso, encontram-se cuidados especiais, como a colocação de roupas da unidade, a escolha do leito apropriado e todo um aparato higiênico no que diz respeito a banhos e desinfecção. Aos familiares, são dadas instruções específicas. Isso tudo ocorre em um curto espaço de tempo e com muita eficiência. O ritual de preenchimento de formulários aumenta o clima de capitulação pessoal.
A UTI é um lugar isolado, separado por uma porta, onde se pode ler: “proibida a entrada de pessoas estranhas”. Lá, o tempo torna-se uma incerteza, e, às vezes, nesses locais, não existe nem mesmo relógio para orientar os pacientes. Geralmente está localizado no último andar do hospital geral ou de uma casa de saúde. Os ruídos dos aparelhos utilizados são intensos e irreconhecíveis pelo senso comum. As janelas são fechadas e a luz é artificial. A temperatura é constante, mantida por ar condicionado. No ar, odor de remédio ou desinfetante. Parece que se tenta controlar as condições de um ambiente ideal.
Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente, desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é vulnerável, submisso e dependente.
Compete ao paciente, se estiver consciente, calar-se. A possibilidade de questionamento é anulada e resta-lhe, para ser aceito e “bem-visto”, o silêncio. Na instituição, parte-se do pressuposto de que o paciente não deseja saber do seu prognóstico, do futuro que o aguarda, acima de tudo se não for favorável à vida. Espera-se uma negação, que, nesse caso, corresponde à própria relutância da equipe de saúde em aceitar o que sabe.
O bom paciente na UTI permanece sedado, quase morto, mesmo que esteja buscando vida. Uma tensão se estabelece: a vida é desejada por todos, mas a equipe médica clama para que não seja inconveniente com reclamações e choros. A vida do paciente beira a morte e o silêncio. Barulhos, de preferência, apenas os da tecnologia, os dos aparelhos.
Para o paciente e seus familiares, esses procedimentos são assustadores, considerando a UTI um lugar frio, impessoal e mecanizado, voltado para a morte. Entre a casa e a UTI há, assim, divergências, como a falta de cumplicidade que é imposta, mas também ocorrem convergências, como a busca de ajuda que é dedicada ao paciente. Em algumas UTIs, para diminuir a tensão constante entre o espaço doméstico e o espaço da unidade, um manual é fornecido aos familiares visando a fornecer uma certa integração entre esses diferentes espaços. Ao que parece, a equipe acredita que as emoções interferem negativamente no tratamento. Algumas vezes até pode ser, mas não se tem tal preceito como absoluto. Talvez o que se tenta mesmo é fugir do confronto com a morte. Relacionar-se com uma pessoa que está muito doente é difícil. É mais fácil lidar de forma abstrata com a doença de um determinado leito. Nem informações sobre o estilo de vida do paciente e circunstâncias sóciopsicológicas são registradas nos prontuários.
Esses comentários e observações, embora pareçam, não são contra a UTI e nem contra as novas tecnologias, mas persiste uma observação: mesmo sendo necessários esses procedimentos, eles não conseguem ficar isentos de conseqüências imprevisíveis, nem de produções subjetivas. Existem implicações em um mundo de significados, quando seres humanos se tornam pacientes. Os avanços da Medicina podem prolongar vidas e permitir que as pessoas retornem ao seu social. Também podem criar novas patologias, limitações permanentes, até seres estranhos. (Santa Roza, 1997).
Decat de Moura (1991) escreve que na UTI as tensões são constantes. A eficiência é uma marca, mas os profissionais, ao perceberem que os outros que estão a tratar são seres humanos como eles, parecem experimentar uma vivência de extrema angústia. Vivem ali algo que parece ser pior que a morte e que, freqüentemente, não se leva em consideração. É difícil defrontar-se com pacientes de fraldas, imobilizados, com aparelhos, chorando, despertos, conscientes ou não de seu estado clínico, além de outras situações constrangedoras. Ocorre uma total dependência que traz medo. Um medo que talvez seja próprio da precariedade da existência humana. Constata-se que, para os profissionais, essa experiência também é revestida de dificuldades. Cuidar de alguém e, efetivamente, aproximar-se dessa pessoa, faz com que da experiência da morte do próximo, surja a consciência do que seja morrer.
Hoje em dia, como já foi visto, é difícil ficar diante de um morto; ele necessita ser mantido oculto e banido. Mesmo o luto dos familiares precisa ser discreto. Por outro lado, paradoxalmente, incitam-se os discursos sobre a morte. Há mesmo uma ciência para tratar do assunto - a tanatologia - que apresenta um vocabulário depurado e autorizado.
Observa-se também que, por alguns momentos, os médicos na UTI se assemelham a um criador de vidas biológicas, e os limites entre o corpo e a mente, a vida e a morte, a doença e a saúde já não são tão precisos. A trama vai-se formando... Em relação às curas na UTI, alguns comentários podem ser feitos. Primeiro, parece que ir para um hospital, entre a vida e morte, para ser curado, é uma resposta a um fato identificado na cultura ocidental contemporânea como fracasso diante da doença que, em última instância, fica equiparada à morte. Antes, o hospital tinha uma outra conotação. Era uma instituição que recolhia as pessoas tanto para se curarem como para morrerem. Entretanto, a partir do momento em que a ciência e a tecnologia da medicina e das outras profissões a ela ligadas experimentam um dramático crescimento e desenvolvimento, a instituição hospitalar se transformou em uma instituição entregue aos processos de cura, tratamento e recuperação, que responde admiravelmente ao desafio da saúde, tornando possível a divisão do trabalho, transformando as emergências em rotina”. (Torres & Guedes, 1984: 103).
Vale observar que muitos dos que vivenciaram a experiência desse tipo de internação sobreviveram por haver algo mais além de aparelhos e tecnologia. Talvez desejo de continuarem vivos. Por outro lado, há também que se pensar na opção que alguns pacientes fazem pela morte. A princípio, pode-se considerar que essa escolha não existiria e, inevitavelmente, ninguém desejaria, de antemão, morrer. No entanto, alguns pacientes, em número cada vez menor, passam a olhar a morte com aceitação e, mesmo, serenidade. Não vêem mais sentido para viver, pois continuar vivo chega a ser desagradável e até mesmo doloroso. No entanto, há toda uma luta contra a morte, na UTI, ocasionando verdadeiros embates.
Nas UTIs, a doença é concebida como inimiga, e toda uma guerra começa a ser travada, na qual sobressai a oposição entre vida e doença. A doença, agora, é equiparada à morte, como já foi dito, e opõe-se à vida pela qual se luta. Vida não fica mais em oposição direta à morte, que é escamoteada, até porque a doença pode ser vencida, mas a morte não (Sontag, 1984).
Os médicos são os guerrilheiros, preparados para defender a vida. O espaço da luta é previamente determinado: o hospital, no caso específico, a UTI. Nessa guerra há regras e funções estipuladas, pré-determinadas, não só para os profissionais, mas também para os pacientes: cada um com tarefas específicas para vencer a doença - os profissionais, com sua eficiência; o paciente, através da aceitação do tratamento. Em torno de ambos, o silêncio. Essa guerra é sutil, sendo sempre prolongada, mesmo com a presença marcante do fim absoluto que é a morte.
Essas UTIs apresentam-se como lugares isolados nos quais não se vê o mundo lá fora, mas onde idéias que constituem o espaço cultural e pessoal de cada sujeito ali inserido podem ser observadas. O aparato técnico entra em contraste com a fragilidade da condição humana, e a situação econômica do paciente que é atendido pode ser determinante para o aumento ou diminuição dos cuidados que lhe serão oferecidos.
É interessante perceber que a UTI é mantida pela comunhão dos objetivos (salvar vidas), solidariedade, existência de um adversário comum (a doença) e formação de equipe para combater o mal. Até os uniformes dos médicos e profissionais de saúde são iguais: roupa branca. Nesse ambiente fechado, a atuação da equipe caracteriza-se pelo suposto trabalho em conjunto. Freqüentemente ouve-se nessa unidade.: “-todos são importantes”. A busca da melhora do paciente une os integrantes do setor. As desavenças ficam para depois, ou são “esquecidas”. A urgência e a necessidade de vencer a doença não propiciam tempo para se pensar em questões que não são nobres, a não ser salvar vidas.
Um ou outro médico pode vir a se destacar na equipe, que, geralmente, varia de dia para dia, dependendo dos plantões. Esses, às vezes, alcançam o brilho devido à sua eficiência, podendo mesmo adquirir um caráter mágico. A idéia de conjunto de pessoas, todas importantes, para salvar vidas, é fundamental, mas a glória individual de um médico não é eliminada e isso pode ser observado. Assustando a alguns, o objetivo maior desses profissionais, de vencer as doenças e prolongar vidas, provoca desequilíbrio.
No território da UTI de tantos desequilíbrios, incertezas e paradoxos, facilmente se passa da luta pela vida à morte resignada (e vice-versa); do desafio que se impõe ao risco de continuar vivo, ao medo de morrer (e vice-versa). Nada é permanente, sendo um espaço ambíguo, onde se procura controlar, através mesmo da negação e isolamento, o imprevisível. Na UTI se esconde e se denuncia: o paciente que morre, o seqüelado, o que ficou em coma; o profissional que não consegue fazer o diagnóstico não salva sempre, é impotente e onipotente.
Vale ainda evidenciar que, mesmo havendo pontos em comum entre as UTIs, como a presença dos respiradores e a ausência de relógio, cada um tem sua particularidade e termos específicos para a sua rotina. Esses fatos fazem com que se pense na singularidade de cada espaço construído: espaço social e individual.
No espaço da UTI, alguns controles são feitos em relação à temperatura ambiente (baixa e constante), à luminosidade (sempre a mesma, seja dia ou noite), aos ruídos das máquinas e à contaminação. Uma imagem que surge é a de um útero. Ali a pessoa pode viver de novo. Passa por um ambiente parecido com o útero materno onde, a princípio, o ambiente provê as necessidades. Mas o (re)nascimento exige que a “pessoa-bebê” respire por si mesma e que, nas vias do desejo, (re)viva.
Quando uma pessoa é internada em uma UTI, torna-se impotente, incapaz de efetuar uma ação para alívio de sua dor, sede, fome, impossibilitada de andar, mover-se na cama, falar e até mesmo respirar.
Uma primeira vivência de satisfação do bebê será encontrada no registro da necessidade; geralmente uma fome será saciada com o alimento oferecido. Em se tratando de seres humanos, no entanto,essa experiência, apesar de ocorrer em um registro orgânico, inscreve-se ao nível do aparelho psíquico. A partir de então, cada demanda do bebê vincular-se-á com o traço mnésico deixado por essa primeira experiência.
Essa explicação foi elaborada por Freud e faz com que se pense no conceito de realidade psíquica. Vale lembrar que o bebê também pode realizar seu desejo através de uma alucinação, assim como o paciente, através de sua capacidade de pensar, pode manter um controle diante da situação pela qual está passando. No entanto, tanto a alucinação do bebê, como o pensamento do paciente não são suficientes para satisfazer suas necessidades. O bebê dispõe de suas manifestações corporais para anunciar a tensão em que se encontra e precisa do outro competente para aliviar seu estado de privação.
O paciente pode reclamar da comida, água, calor, falta de ar, entre outras coisas, solicitando aportes reais de que carece para acalmá-lo. Os dois, além da satisfação de suas necessidades, dependerão da mão” que dá o que eles solicitam. Os procedimentos necessários à vida do paciente (dieta, oxigênio, medicação, exames, posição, cuidados higiênicos e assim segue), assim como os cuidados com o bebê, como já foi escrito, inscrevem-se ao nível do aparelho psíquico. Nos dois casos, não basta saciar a necessidade, porque existe uma demanda, que é demanda de amor.
A forma como cada um vai lidar com essa renúncia e privação, provavelmente, estará relacionada à sua história de vida. Como alguns pacientes conseguem suportar tanta privação? Por que outros esbravejam e até fogem da UTI? Por que outros preferem a morte? Alguns, por fim, terminam perguntando sobre si, sua história, seu vazio, e, ao viverem de novo, podem descobrir que, ao respirarem sozinhos, são responsáveis tanto por sua história passada como pela que virá.
Morto-Vivo: Crônica para uma Morte
Para terminar, vale apresentar um caso clínico. Escrever sobre o caso de um paciente, descrever os caminhos e mesmo as dificuldades vividas não é fácil. Será feito o uso da livre associação ao se apresentar um material registrado, visando a enfocar condições sobre a morte. As vivências são difíceis de serem explanadas e só adquiriram significado a posteriori, sendo enriquecidas enquanto reflexão, mas também reduzidas a um certo esquema que é próprio da teoria.
O paciente verdadeiramente terminal, ou seja, aquele em que o diagnóstico e prognóstico apontam um declínio progressivo para a morte, não tem indicação para UTI. São indicados aqueles que se encontram gravemente doentes, com risco atual de vida, cuja condição é potencialmente reversível. Nesse caso, tem-se os pacientes que estão entre a vida e a morte, e que o avanço da Medicina pode ajudar a mantê-los vivos.
Após um telefonema de um hospital, foi concedida a transferência dessa paciente para nossa UTI melhor equipada, oferecendo maior probabilidade de uma boa evolução clínica.
Essa moça de quinze anos chega apresentando um diagnóstico de insuficiência respiratória e pneumonia. Após a internação, foi constatado pela equipe o diagnóstico de miopatia congênita, que, até então, tinha sido omitido e traria dúvida sobre a indicação para ser aceita na UTI. Assim sendo, o caso era grave e o prognóstico desfavorável. Rapidamente, foi providenciado um esquema de antibióticos e colocaram-na em ventilação mecânica.
A paciente, totalmente dependente da equipe, demonstra ansiedade. Com olhos arregalados, olha para o lugar onde está e para as pessoas que dela se aproximam. Essa paciente, jovem e consciente, mobiliza a equipe. E a ela o estranho assusta.
Ao passar esse momento de mobilização, os profissionais percebem que há uma família do lado de fora, provavelmente angustiada. O que está acontecendo? Não sabem e o desconhecido é marcante. Essa família vem em busca de respostas. Nessa situação de real dependência em relação à equipe de saúde, que faz o diagnóstico e conduz o tratamento, a demanda inicial da paciente e sua família estará voltada para o médico. Por isso, faz-se necessário um contato com os familiares. A palavra dele reveste-se de grande poder e sua informação (objetiva) será subjetivada, decodificada e interpretada de acordo com as vivências singulares características da história de vida da paciente e do lugar que ocupa em seu seio familiar.
Nesse momento, o médico foi franco, apresentando a dificuldade do caso, mas sem se esquecer de que, quando se trata de pessoas, precisa-se “ler”, escutar e compreender a enfermidade a partir do paciente. O prognóstico também depende de como a paciente poderá reagir ao tratamento. Os pais escutam, ficam apreensivos, mas mostram satisfação por considerarem que ali sua filha poderá ser bem cuidada.
O Natal e o Ano Novo já passaram. Recomeça-se o “desmame”. Agora a paciente reage bem, com o auxílio da cânula, e vai para a enfermaria de adolescentes. Depois tem alta. Vão para casa, mas por pouco tempo. Voltam para a UTI, a família e a paciente. Mais uma vez, recebe alta da UTI. Retorna para a enfermaria. Passa por um caminho já conhecido, sofre, cansa, aceita a morte como parte da vida. Até que, em uma quarta-feira, depois de tanto sofrimento, não tem mais vontade de comer. É hora de se lidar com o inevitável - a morte. A família, a psicóloga e também os médicos ficam com ela até o final. Depois de tanto sofrimento, o pai agradece e diz que vai ficar bem. Ainda tem um outro filho que precisa de seus cuidados.
Qual Não foi a Surpresa...
A princípio, nunca se imagina que uma pessoa possa chegar a completar quinze anos tendo uma miopatia congênita, mas tratava-se de uma pessoa resistente, que lutava determinada pela vida. Parecia que seus pais precisavam de seu sangue vivo para viverem. O sentido da vida deles talvez fosse a cura da filha. Ela, esse lugar ocupava. Lugar de uma paciente viva, com familiares a seu lado o tempo todo, reivindicando melhores tratamentos para vencer a doença.
Essa foi apenas uma das surpresas. Uma outra, talvez mais perturbadora, foi a rejeição ao uso da cânula metálica. Era de se esperar que, para quem queria viver, isto não seria problema, mas foi desestruturante. O mundo caiu. O pai e a filha desesperaram. A mãe mostrava-se preocupada com os dois, mas não demonstrou um sofrimento maior. A paciente se olhava no espelho. Era muito vaidosa. Nunca tinha imaginado que para viver precisaria de uma cânula metálica.
A raiva do pai foi quase incontrolável. Era muito difícil aceitar o limite. Parecia que só naquele momento veio a descobrir que sua filha apresentava problemas sérios para viver. Foram quinze anos para se dar conta de que sua filha tinha dificuldades congênitas. Veio a culpa. Por que foi gerada uma criança assim? Para não sofrer, ficou na fantasia de que sua filha era perfeita. A patologia fora, durante todo esse tempo, negada. Até no seu pedido de vaga para a UTI, ela foi omitida.
A equipe se surpreendia com a dedicação daquele pai. Chamou a atenção sua necessidade de estar ao lado da filha. Chegou a perder o emprego. Depois de externar sua raiva e revolta, a situação mudou. Foi procurar outro emprego. Continuava indo todos os dias à UTI, mas não passava o dia todo com a filha. Parecia que já não se sentia tão culpado pela situação.
A família e a paciente revivem suas deficiências. Agora, podendo olhar de uma outra maneira. Um fantasma caiu e depois até provocou riso, como o palhaço quando cai. Outras fantasias puderam aparecer. A família começou a poder lidar com a morte. “Nem o sol, nem a morte podem ser olhados de frente”. (Rodrigues, 1996).
Nesse tempo todo, a morte foi projetada para o futuro e essa criança foi-se mantendo viva. Pelos relatos posteriores dos pais parecia, em alguns momentos, que fora “ressuscitada”, e chegou mesmo a andar.
Por fim, uma outra surpresa: a aceitação do pai depois do último suspiro. Ele ficou ao lado da filha até o fim, e uma surpresa maior: os médicos também. Um chegou mesmo a chorar no final. O pai também chorou. A psicóloga arrumou os pertences da paciente. Olhou mais uma vez para a menina. Agora ela se foi, parecia em paz. Descemos com o corpo. O pai abraça a psicóloga. Diz que está bem. Vai cuidar de seu outro filho. Parece que, para que o pai pudesse suportar essa falta já anunciada, foi necessário ele se (des)identificar desse objeto subjetivo, a filha, para que ela pudesse morrer enquanto objeto objetivo, sem que ele morresse também. Assim, ele até pôde constituir um projeto para o futuro. O luto começou.
Nesse caso, entre a vida e a morte na UTI, alguns encontros foram possíveis. Entrou-se em confronto com a morte, enquanto vivência de castração, foi-se tocado, incomodado e transformado. Os vínculos afetivos possibilitaram a superação da tendência ao impessoal, ao sofrimento e à percepção da morte iminente, diante do medo de estar só.
Muitas coisas não puderam ser compreendidas - a ausência da mãe, a desistência de viver da paciente... Melhor não se compreender. Há sempre algo que escapa... Melhor assim, senão é possível se acreditar na imortalidade...
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As idéias apresentadas neste ensaio são frutos da dissertação de Mestrado em Psicologia e Práticas Sócio culturais, realizada no período de 1995-1998 (Oliveira, 1998). Certamente, marcadas por outras críticas, reflexões, encontros e desencontros.
Algumas noções escapam à ciência: beleza, compaixão, dor, por exemplo. As teorias científicas quase nada podem esclarecer a respeito delas. E sobre vida, saúde e morte, será possível falar cientificamente?
O que é viver? O que é sobreviver? O que é viver após passar em uma Unidade de Tratamento Intensivo (de agora em diante UTI), por uma situação limite, entre a vida e a morte? Aqui, o campo delimitado para se pensar nessas questões será o da saúde, porque foi observando e participando das práticas intensivistas1 que as perguntas surgiram.
Estudar singularidade e subjetividade frente à saúde, colocando em jogo a capacidade humana de enfrentar ameaças, é tarefa difícil. Antes, é preciso admitir a possibilidade de objetivar a singularidade e a subjetividade. Quando assim se faz, há problemas a enfrentar. O primeiro é definir singularidade.
Para se buscar tal definição, voltar-se-á às práticas intensivistas. Na UTI tudo é muito urgente e grave. Decat de Moura (1996:10), ao tratar a singularidade nesse espaço, assim escreve: “Na urgência, o sujeito é lançado no estado inicial de desamparo, estado que pode repetir-se em qualquer momento de vida, revelando a precariedade da condição humana. O mundo do humano é estruturado em palavras e no mundo simbólico da linguagem, enquanto seres falantes, os homens são iguais. Sua "singularidade" se coloca no campo do objeto. Singularidade “sublime” que confere ao TRIEB uma satisfação diferente do seu alvo “natural”.
Para melhor esclarecer que singularidade está relacionada com o objeto, recorda-se que o bebê, quando se vê frente ao seu “primeiro desamparo”, ainda enquanto infans, vai em busca de um objeto para se satisfazer.
Freud |
Freud (1900, 1905, 1925), ao escrever sobre vivência de satisfação, postula uma experiência originária, apaziguadora das tensões inevitáveis do organismo, a que o bebê muito pequeno é submetido. O apaziguamento é obtido graças a uma intervenção exterior criada pela necessidade. A satisfação, segundo o autor citado, passa a ser ligada à imagem do objeto que a propiciou. Quando retorna o estado de tensão, a imagem do objeto é reinvestida, produzindo-se uma alucinação do objeto que lhe falta - leite, seio, mamadeira, voz, olhar. Winnicott (1988) evidencia que o lactente, nesse estágio, a dependência absoluta, necessita de holding. A provisão ambiental - a mãe suficientemente boa - possibilitará ao bebê ter a ilusão de que o seio da mãe é parte dele. Assim, desenvolve-se no bebê um objeto subjetivo. Considerando-se esse desamparo e a ilusão que o supera, como estrutural e estruturante, é possível compreender que a estrutura humana é, pois, uma ficção, e a singularidade nessa estrutura está inserida, sendo a existência humana, como escreve Castiel (1994), um drama, uma luta para se chegar a ser o que se deve ser.
E subjetividade, do que se trata? No primeiro momento, encontrou-se uma definição satisfatória em Guattari. Em geral, em Psicologia, quando se fala em subjetividade, logo aparece a idéia de algo apenas específico do indivíduo, próprio e particular, aqui compreendido como singularidade, mas Guattari, ao definir subjetividade, confere-lhe um estatuto coletivo. Em “Revolução molecular” (1977/1987), ao tratar do movimento das minorias, da autogestão dos hospitais, das rádios livres, dos partidos políticos, da Psicanálise e suas metamorfoses, sugere a emergência de novas subjetividades. Preocupado com a ordem capitalista, observa o controle que o capital exerce não só aos níveis econômico e social, mas também ao da subjetividade dos indivíduos, sendo que especialmente a cultura exerce um papel de sujeição subjetiva. O que a subjetividade capitalística produz é justamente a homogeneização dos indivíduos, normatização e massificação de pensamentos, seguindo um sistema de valores. Essa ordem é “projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto, etc.” (Guattari & Rolnik, 1986: 42).
Avançando em seus estudos, uma definição de subjetividade proposta pelo autor é: conjunto de condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva. (Guattari, 92: 19).
É nessa perspectiva da subjetividade, que se desenvolve no socius e junto a intensidades pré-verbais (lógica do afeto), que se vai enfrentar a questão de viver em momentos de situações limite, como estar entre a vida e a morte em uma UTI. Nesses momentos, produções originais de subjetividade podem intervir nos processos de adoecimento e recuperação, levando em consideração a interação do paciente com o espaço e com a assistência à sua saúde, a partir da própria postura de vida (classe social, história de vida, outros acontecimentos).
Singularidade aqui aceita e subjetividade definida a partir de Guattari, a princípio parecem entrar em conflito, pois este se opõe a alguns conceitos da Psicanálise. Entretanto, da singularidade à subjetividade há um caminho a percorrer e uma proposta de coexistência. Aposta-se que a antítese entre singular, subjetivo e objetivo não existe.
Através dessas noções, percebe-se que, para abordar os modos saudáveis que permitem ao homem enfrentar o seu viver em uma UTI, é imprescindível ter atenção para com um sujeito biológico, vivente, dotado de inconsciente, que constitui um social e se constitui também em um social.
Ao se cuidar de pacientes na UTI, essas características do sujeito não podem ser esquecidas. São difíceis de serem integradas e implicam um alto grau de complexidade. No entanto, como Castiel (1994) aponta, propositadamente ou a propósito de, faz-se necessário falar de situações, mesmo que complexas, das práticas de saúde. Não é possível deixá-las de lado por parecerem inalcançáveis, ou mesmo fazer de conta que não existem.
Ao se observar em uma UTI as práticas de saúde, facilmente são perceptíveis níveis diferentes e interativos de atendimento. Corpos humanos sofrem e, nas palavras de Benoit (1989:78), “o sofrimento do corpo é relativo não apenas à própria doença, mas também à mobilização do mundo arcaico do sujeito que funciona na própria base de sua estrutura”. Com essa noção, pode-se averiguar os objetos da Medicina em interação com a singularidade e subjetividade de cada paciente.
Na prática médica, além de objetos concretos, como os medicamentos, há de se pensar no medicinal, que é tudo aquilo que serve para consolar os infortúnios da existência: atos, ações, remédios que fazem cessar males ou mesmo diminuir um sofrimento, levando-se sempre em conta as épocas e culturas. O medicinal evoca uma função, a de cuidar, e está presente tanto em quem trata como em quem é tratado. Vale prestar atenção para o fato de que nem sempre o medicinal do paciente funciona em harmonia com o medicinal do profissional de saúde. A partir da realidade desses vínculos, na UTI nossa atenção volta-se para o uso de aparelhos (objetos medicinais?) que podem manter a vida.
O desenvolvimento técnico das últimas décadas possibilitou suporte a órgãos humanos e funções vitais. Na UTI, precisamente, aliadas à luta pela “imortalidade”, estão as possibilidades de progresso do conjunto da ciência e da técnica, que não se dissociam das possibilidades de “mutação” do homem em todos os seus níveis de vida: biológico, físico, psíquico, social, político, etc. Esse fato provoca reflexões acerca do viver que torna possível a “manutenção” da vida. Será uma outra sociedade, uma outra liberdade, um outro modo de viver para suportar uma prática que adia a morte? (Morin, 1997)
O Adiamento da Morte?
Os homens nascem. Os homens morrem. Assim continua a acontecer, mesmo após todas as transformações da humanidade durante o decorrer da sua história. Essas afirmativas parecem óbvias, mas não são. Como questões, produzem minuciosas discussões filosóficas, antropológicas, psicológicas, míticas e práticas.
Os estudos sobre vida e morte vêm aumentando progressivamente nas últimas décadas, apresentando várias facetas. Falou-se e fala-se do porquê da morte neste século se dar no campo médico - morte medicalizada - (Ariès 1977/1990), (Ziegler, 1975), do afastamento dos médicos de seus pacientes terminais (Zaidhaft, 1990), da dignidade da morte (Kübler-Ross, 1987), do tabu da morte (Rodrigues, 1983), entre outros focos. Mesmo assim, apresenta-se o tema associado a um significativo silêncio.
No fundo desse silêncio coletivo, os fantasmas individuais fazem suas danças macabras, roubando aos homens a consciência de seus limites, fazendo com que se acreditem imortais, por isso definitivamente presos ao tempo imobilizado” (Rodrigues, 1983, 202). Por que será que isto acontece? O que a morte provoca quando se pára por alguns minutos para se pensar nesse fenômeno e nos estudos realizados em torno dele?
Na escala filogenética, o homem é o único animal que se sabe mortal. A consciência da morte faz parte das conquistas constitutivas dos homens. “Já não é mais uma questão de instinto, e sim a aurora do pensamento humano, que se traduz por uma espécie de revolta contra a morte” (Morin, 1997:23). A consciência da morte e o horror que ela provoca são marcas da humanidade.
Engana-se, no entanto, quem pensa que a morte sempre foi compreendida da mesma maneira pelos homens. As diversidades marcam essa compreensão em tempos e lugares diferentes. A proposta de olhar essas situações mais de perto reserva um momento de reflexão por detrás dos panos. Inicialmente, três imagens podem ser apresentadas sobre as diversas maneiras de morrer. Imagens, aqui compreendidas, emergem das mais variadas formas, na medida em que são apreendidas nas diversas práticas sócioculturais. O momento exato da morte será o ponto de referência para possíveis interpretações.
A primeira imagem que se ressalta é a da boa morte pela boa vida. Ou seja, para se morrer de uma forma tranqüila, precisa-se viver bem-aventuradamente. Não basta o arrependimento na hora da morte. Quanto a esta, Ariès (1977/1990: 329) afirma que “não é, pois, no momento da morte nem na proximidade da morte que se torna preciso pensar nela. É durante toda a vida”. Essa imagem é remetida a uma época ou a uma prática social na qual a morte era esperada a qualquer momento, e meditar sobre ela fazia parte da orientação da vida. Pode-se considerar que, através dessa doutrina, a morte estimulava o estudo do ser a partir da fragilidade da vida. As pessoas não se desesperavam, mesmo frente ao perigo iminente. Para um homem preparado, todos os momentos se assemelhavam aos da partida.
Pode-se considerar que a morte era racionalizada. Quem fosse justo teria uma boa morte. Vida e morte ficavam bastante ligadas. A morte era celebrada em clima de festa. Era vivida como parte integrante da vida. Nessa imagem, ela atinge o grupo social do qual o morto faz parte. É um fato social e público.
Outra imagem da morte é aquela em que ela é negada durante toda a vida. Faz-se de conta que ela não existe. Tenta-se fugir dela. A partir dessa forma de se relacionar com o fim, a morte passa a ser impessoal. Não é mais uma pessoa, com um nome e marcas pessoais, que perde a vida. É, de preferência, no anonimato que a morte chega.
A sociedade, nesse caso, expulsa a morte. Nada mais anuncia ter acontecido alguma morte na cidade. Como resquício da morte anunciada com carros mortuários e avisos nas ruas, ainda resta, nos jornais e revistas, um espaço mínimo para divulgação de óbitos, que quase ninguém lê. Tudo se passa na cidade como se ninguém morresse mais. Apenas alguns homens de Estado, ou mesmo, públicos, têm sua morte anunciada que, a partir de algumas semanas, é esquecida. A morte surge como um desaparecimento.
Nessa situação criada diante da morte, o local ideal para se morrer passou a ser o hospital. Lá a morte pode escapar da publicidade e passa a ser solitária. Há toda uma disciplina a regular o mundo da assepsia e da higiene. O doente e possível morto, por ser inconveniente, passa a ser escondido do mundo e da sua família, que desejam e necessitam continuar uma vida normal. O silêncio passa a marcar essas mortes. Passa-se a querer ludibriá-la.
Parece que a essas imagens tem-se seguido outra, que de alguma forma tenta integrar as apresentadas acima. Na primeira semana de junho de 1996, uma notícia despertou curiosidade nos meios de comunicação. Morreu o psicólogo Timothy Leary, que na época estava obcecado por computadores. Ele sofria de câncer na próstata desde 1995. Planejava cometer suicídio e transmiti-lo ao vivo pela Internet, na qual mantinha uma página com o relatório semanal de seu estado de saúde. Seu projeto não se concretizou. Ele veio a falecer, cercado por amigos e parentes, em sua cama. O momento de sua morte foi gravado por câmaras de vídeo para ser mostrado na Internet. (Oliveira, 1996)
Impossível saber dessa notícia sem sentir um certo estranhamento. Leary não morreu no hospital, como geralmente tem sido um hábito desses últimos anos, principalmente se a pessoa já está doente. E mais do que isso, ele fez sua morte anunciada utilizando a Internet. Será que essa forma de morrer desperta outra imagem sobre a morte ao lado da tecnologia, como os computadores, Internet e por que não, aparelhos encontrados nas UTIs?
São marcas a serem investigadas, a constatar que, entre a vida e a morte, há uma produção imaginária incontável, que tenta dar conta da precariedade da existência.
O Lidar com a Morte
A espécie humana, ao lidar com a morte, apreende que ela não é apenas uma realidade biológica à qual está necessariamente sujeita, como se supõe para os outros animais sexuados que povoam a biosfera. Para essa espécie, a questão se apresenta diferente. Observa-se que alguns elementos comuns cercam o término da existência, isto é, a morte.
Mesmo em épocas diferentes e, às vezes, de maneira nada semelhante, a princípio, em torno da morte é celebrada uma cerimônia, que marca solidariedade do indivíduo com sua espécie e comunidade. Por mais que se queira negar, a vida de um ser humano e sua morte não são apenas um destino individual. Trata-se ainda de um elo que se estende ao gênero humano. O momento da morte também nunca se mostra como um fenômeno neutro. Causa um mal-estar e parece uma desgraça. Também depende de condições mal conhecidas do além, fazendo com que se busquem continuidades mesmo chegando ao fim. E, se entre o momento da morte e o fim da vida existe um intervalo, faz parte do acontecimento um estado intermediário. “Os ritos da morte comunicam, assimilam e expulsam o impacto que provoca o fantasma do aniquilamento”. (Rodrigues, 1983: 21).
O fim da vida e os ritos que são criados para se lidar com essa situação fazem parte da crise, drama e solução do mal-estar que a morte causa. Esses ritos propiciam que, do desespero e angústia, se obtenham consolo e esperança. Quando um ente querido morre, como um recém-nascido que durante meses foi aguardado por seus pais, familiares e amigos, a morte do bebezinho reproduz toda uma vivência cultural, simbólica, ideológica e mesmo sócioeconômica desse grupo.
Morin (1997), ao escrever sobre o indivíduo, a espécie e a morte, evidencia que a consciência humana da morte supõe uma ruptura na relação indivíduo-espécie. Conforme se foi subindo na escala animal, houve “uma promoção da individualidade em relação à espécie, uma decadência da espécie em relação à individualidade “(Morin, 1997: 56), mas quase sempre isto é recalcado. Há sempre a busca de uma razão para a morte: doença, velhice, azar, acidentes. O que não se aceita é que seja uma necessidade (da espécie?).
Observaram-se pontos em comum, da espécie humana, ao lidar com a morte, mas não podemos esquecer que a estreita relação entre vivos e mortos sofre mudanças no decorrer do tempo.
Nas sociedades industriais, a morte passa a ser um acontecimento agressivo, e “uma doença largamente considerada como sinônimo de morte é tida como algo que se deve esconder (...) para as pessoas que estão morrendo, é melhor que sejam poupadas dessa notícia, (...) a boa morte é a repentina...”. (Sontag, 1984: 12-13) Vale lembrar que, antes, a morte súbita era para os covardes. Morrer em paz era poder completar a sua obra e se despedir dos seus. Ao final do século XX, um século não só marcado por duas guerras mundiais, mas também por inovações e mudanças que ocorreram rapidamente, em alguns momentos e lugares os costumes e regras se perderam.
O mito da imortalidade do homem, e não mais de sua alma, ganha força. No capitalismo contemporâneo, a morte se faz presente nas coisas: produz-se “lixo”2 todo dia, pelo menos na chamada civilização cristã ocidental. A imortalidade dos homens e a mortalidade das coisas do mundo ficam diretamente proporcionais. Os dois fatos se relacionam ao modo como o homem se apropria da dimensão do real e da dimensão temporal na sociedade contemporânea - o efeito é um só: o esfumaçamento do finito (Brasil, 1995).
Cada vez mais realizam-se pesquisas voltadas para obtenção de aparelhos que possibilitem manter vivos os homens, e até mesmo para o congelamento dos corpos, tentando parar o tempo e apostando no prolongamento da vida. Também iniciam-se as experiências de clonagem amplamente divulgadas nos meios de comunicação. “É sem dúvida, por não ter podido resolver o problema do fim ( simplesmente porque o problema não tem solução) que o homem se voltou para o começo”. (Baudrillard, 1992: 135). Ao ser silenciada a morte, a vida passa a ser enaltecida como valor supremo. Uma morte foi inventada, fora do tempo real do acontecimento, projetada para o futuro, com aparelhos que conseguem prolongar a vida. Criou-se a ilusão de dar crédito à imortalidade perante a vida. Desrespeitou-se a morte como limite. Impôs-se um modo fantasmático de vivenciá-la (Oliveira, 1997). Também agora se quer dar assistência ao suicídio reforçando a abolição do limite do tempo e subordinando a morte ao tempo da vontade. Mais uma vez, a busca é da imortalidade.
A morte fantasmática vai apresentar duas faces: a do futuro sempre adiado e a do presente não efetivado. Ao se negar o tempo da morte, disseminado nas coisas da vida, a diferença entre a morte e a vida se desmancha no ar. Talvez o modo dominante e naturalizado da subjetivação da morte atualmente seja o da morte fantasmática. Tanto frente ao futuro sempre adiado, como no presente não efetivado, a vida vai sendo seqüestrada pela morte como fantasma (Brasil, 1995).
A UTI, para Onde se Vai?
Nos dias atuais, as UTIs existentes, de modo geral, são locais onde se internam doentes graves que ainda têm um prognóstico favorável para viver. Nesse local, são atendidos casos de pessoas que se encontram em uma situação limite (entre a vida e a morte) e necessitam de recursos técnicos e humanos especializados para sua recuperação. São espaços não muito grandes, com divisões internas semelhantes: sala onde ficam os pacientes, recepção, sala de reunião, quartos de descanso dos profissionais, banheiro e copa. Eles são reconhecidos e legitimados pelos médicos como um ambiente onde são utilizadas técnicas e procedimentos sofisticados para reverter distúrbios que colocam em risco vidas humanas.
Em qualquer UTI estão presentes os ventiladores mecânicos. Os primeiros desenvolvidos foram chamados de pulmões de aço, sendo construídos após a II Guerra Mundial. Também são encontrados nas UTIs os monitores cardíacos, desenvolvidos a partir de 1960. Com esse equipamento foram criadas, então, as unidades coronarianas, que, com esse avanço técnico, conseguiram reduzir em trinta por cento a mortalidade na fase aguda do infarto do miocárdio.
Nas UTIs, desde sua implantação, foi dada ênfase aos recursos técnicos existentes. Cada vez mais são realizados estudos para melhorar os equipamentos. No entanto, essa tecnologia, quando considerada isoladamente, pode ficar bastante limitada. Os recursos humanos, formados por profissionais intensivistas, precisam também ser aperfeiçoados.
No início, as UTIs eram reservadas a pacientes com infarto agudo; depois, com a criação de equipamentos mais sofisticados, passou-se a cuidar também de pacientes portadores de insuficiência respiratória, insuficiência renal aguda, hemorragia digestiva alta, em estado de coma, estado de choque, e diversas outras situações igualmente graves.
Os profissionais que ali trabalham são altamente especializados e recebem treinamentos especiais. Nas UTIs, podem ser encontrados profissionais com diferentes formações: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas e psicólogos. Certo é que, em poucos locais se encontra uma equipe de trabalho formada com todos esses profissionais.
Ao se olhar para os doentes nesse local, é possível observar a aplicação do mesmo processo de despojamento que Goffman (1961/1974) descreve a respeito do processo de admissão no serviço militar, nos conventos e manicômios. Os múltiplos comportamentos exigidos dos doentes ao longo da hospitalização revelam esse despojamento. Assim, o processo de internação e funcionamento da UTI chama atenção por constar de alguns rituais.
No momento da ida para a UTI, começa a se evidenciar a rotina dessa unidade hospitalar. A primeira ação normalmente a ser realizada é a da “perda” das roupas, caso ainda não tenham sido retiradas em outra unidade. Esse processo de admissão remete a outras perdas, como a da saúde e a de “direitos”. Outros procedimentos, da competencia da equipe, também podem ser observados colher dados a respeito da doença, verificar o estado clínico de quem está sendo atendido, guardar os pertences pessoais. Além disso, encontram-se cuidados especiais, como a colocação de roupas da unidade, a escolha do leito apropriado e todo um aparato higiênico no que diz respeito a banhos e desinfecção. Aos familiares, são dadas instruções específicas. Isso tudo ocorre em um curto espaço de tempo e com muita eficiência. O ritual de preenchimento de formulários aumenta o clima de capitulação pessoal.
A UTI é um lugar isolado, separado por uma porta, onde se pode ler: “proibida a entrada de pessoas estranhas”. Lá, o tempo torna-se uma incerteza, e, às vezes, nesses locais, não existe nem mesmo relógio para orientar os pacientes. Geralmente está localizado no último andar do hospital geral ou de uma casa de saúde. Os ruídos dos aparelhos utilizados são intensos e irreconhecíveis pelo senso comum. As janelas são fechadas e a luz é artificial. A temperatura é constante, mantida por ar condicionado. No ar, odor de remédio ou desinfetante. Parece que se tenta controlar as condições de um ambiente ideal.
Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente, desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é vulnerável, submisso e dependente.
Compete ao paciente, se estiver consciente, calar-se. A possibilidade de questionamento é anulada e resta-lhe, para ser aceito e “bem-visto”, o silêncio. Na instituição, parte-se do pressuposto de que o paciente não deseja saber do seu prognóstico, do futuro que o aguarda, acima de tudo se não for favorável à vida. Espera-se uma negação, que, nesse caso, corresponde à própria relutância da equipe de saúde em aceitar o que sabe.
O bom paciente na UTI permanece sedado, quase morto, mesmo que esteja buscando vida. Uma tensão se estabelece: a vida é desejada por todos, mas a equipe médica clama para que não seja inconveniente com reclamações e choros. A vida do paciente beira a morte e o silêncio. Barulhos, de preferência, apenas os da tecnologia, os dos aparelhos.
Para o paciente e seus familiares, esses procedimentos são assustadores, considerando a UTI um lugar frio, impessoal e mecanizado, voltado para a morte. Entre a casa e a UTI há, assim, divergências, como a falta de cumplicidade que é imposta, mas também ocorrem convergências, como a busca de ajuda que é dedicada ao paciente. Em algumas UTIs, para diminuir a tensão constante entre o espaço doméstico e o espaço da unidade, um manual é fornecido aos familiares visando a fornecer uma certa integração entre esses diferentes espaços. Ao que parece, a equipe acredita que as emoções interferem negativamente no tratamento. Algumas vezes até pode ser, mas não se tem tal preceito como absoluto. Talvez o que se tenta mesmo é fugir do confronto com a morte. Relacionar-se com uma pessoa que está muito doente é difícil. É mais fácil lidar de forma abstrata com a doença de um determinado leito. Nem informações sobre o estilo de vida do paciente e circunstâncias sóciopsicológicas são registradas nos prontuários.
Aos poucos, a equipe intensivista impõe ao novo doente e seus familiares um “modo de ser paciente”. Uma outra estratégia é utilizada: trata-se das informações dadas aos familiares sobre o estado clínico do paciente. Nem sempre essas informação são claras, pois os médicos utilizam termos técnicos em seus boletins. Mesmo assim, são satisfações oferecidas a respeito de um ente querido, que está sendo cuidado por uma equipe que vai apresentando sua competência. Uma relação de confiança precisa, então, ser estabelecida para que o papel do paciente internado e obediente seja aceito.
Esses comentários e observações, embora pareçam, não são contra a UTI e nem contra as novas tecnologias, mas persiste uma observação: mesmo sendo necessários esses procedimentos, eles não conseguem ficar isentos de conseqüências imprevisíveis, nem de produções subjetivas. Existem implicações em um mundo de significados, quando seres humanos se tornam pacientes. Os avanços da Medicina podem prolongar vidas e permitir que as pessoas retornem ao seu social. Também podem criar novas patologias, limitações permanentes, até seres estranhos. (Santa Roza, 1997).
Decat de Moura (1991) escreve que na UTI as tensões são constantes. A eficiência é uma marca, mas os profissionais, ao perceberem que os outros que estão a tratar são seres humanos como eles, parecem experimentar uma vivência de extrema angústia. Vivem ali algo que parece ser pior que a morte e que, freqüentemente, não se leva em consideração. É difícil defrontar-se com pacientes de fraldas, imobilizados, com aparelhos, chorando, despertos, conscientes ou não de seu estado clínico, além de outras situações constrangedoras. Ocorre uma total dependência que traz medo. Um medo que talvez seja próprio da precariedade da existência humana. Constata-se que, para os profissionais, essa experiência também é revestida de dificuldades. Cuidar de alguém e, efetivamente, aproximar-se dessa pessoa, faz com que da experiência da morte do próximo, surja a consciência do que seja morrer.
Hoje em dia, como já foi visto, é difícil ficar diante de um morto; ele necessita ser mantido oculto e banido. Mesmo o luto dos familiares precisa ser discreto. Por outro lado, paradoxalmente, incitam-se os discursos sobre a morte. Há mesmo uma ciência para tratar do assunto - a tanatologia - que apresenta um vocabulário depurado e autorizado.
Observa-se também que, por alguns momentos, os médicos na UTI se assemelham a um criador de vidas biológicas, e os limites entre o corpo e a mente, a vida e a morte, a doença e a saúde já não são tão precisos. A trama vai-se formando... Em relação às curas na UTI, alguns comentários podem ser feitos. Primeiro, parece que ir para um hospital, entre a vida e morte, para ser curado, é uma resposta a um fato identificado na cultura ocidental contemporânea como fracasso diante da doença que, em última instância, fica equiparada à morte. Antes, o hospital tinha uma outra conotação. Era uma instituição que recolhia as pessoas tanto para se curarem como para morrerem. Entretanto, a partir do momento em que a ciência e a tecnologia da medicina e das outras profissões a ela ligadas experimentam um dramático crescimento e desenvolvimento, a instituição hospitalar se transformou em uma instituição entregue aos processos de cura, tratamento e recuperação, que responde admiravelmente ao desafio da saúde, tornando possível a divisão do trabalho, transformando as emergências em rotina”. (Torres & Guedes, 1984: 103).
Vale observar que muitos dos que vivenciaram a experiência desse tipo de internação sobreviveram por haver algo mais além de aparelhos e tecnologia. Talvez desejo de continuarem vivos. Por outro lado, há também que se pensar na opção que alguns pacientes fazem pela morte. A princípio, pode-se considerar que essa escolha não existiria e, inevitavelmente, ninguém desejaria, de antemão, morrer. No entanto, alguns pacientes, em número cada vez menor, passam a olhar a morte com aceitação e, mesmo, serenidade. Não vêem mais sentido para viver, pois continuar vivo chega a ser desagradável e até mesmo doloroso. No entanto, há toda uma luta contra a morte, na UTI, ocasionando verdadeiros embates.
Muitas são as palavras usadas nas UTIs que lembram guerra e luta. Os tratamentos de emergência apresentam uma estrutura militar. O que pensar a respeito de “esquemas de anti-bióticos”, bombardeios com raios”, “quimio-terapia”, “infiltração”, “bactérias que invadem”, entre outras expressões? Até a expressão “jogar a toalha” é própria do boxe: quando o lutador já não possui mais condições de continuar o combate, seu treinador “joga a toalha” para que o mesmo seja encerrado.
Nas UTIs, a doença é concebida como inimiga, e toda uma guerra começa a ser travada, na qual sobressai a oposição entre vida e doença. A doença, agora, é equiparada à morte, como já foi dito, e opõe-se à vida pela qual se luta. Vida não fica mais em oposição direta à morte, que é escamoteada, até porque a doença pode ser vencida, mas a morte não (Sontag, 1984).
Os médicos são os guerrilheiros, preparados para defender a vida. O espaço da luta é previamente determinado: o hospital, no caso específico, a UTI. Nessa guerra há regras e funções estipuladas, pré-determinadas, não só para os profissionais, mas também para os pacientes: cada um com tarefas específicas para vencer a doença - os profissionais, com sua eficiência; o paciente, através da aceitação do tratamento. Em torno de ambos, o silêncio. Essa guerra é sutil, sendo sempre prolongada, mesmo com a presença marcante do fim absoluto que é a morte.
Essas UTIs apresentam-se como lugares isolados nos quais não se vê o mundo lá fora, mas onde idéias que constituem o espaço cultural e pessoal de cada sujeito ali inserido podem ser observadas. O aparato técnico entra em contraste com a fragilidade da condição humana, e a situação econômica do paciente que é atendido pode ser determinante para o aumento ou diminuição dos cuidados que lhe serão oferecidos.
É interessante perceber que a UTI é mantida pela comunhão dos objetivos (salvar vidas), solidariedade, existência de um adversário comum (a doença) e formação de equipe para combater o mal. Até os uniformes dos médicos e profissionais de saúde são iguais: roupa branca. Nesse ambiente fechado, a atuação da equipe caracteriza-se pelo suposto trabalho em conjunto. Freqüentemente ouve-se nessa unidade.: “-todos são importantes”. A busca da melhora do paciente une os integrantes do setor. As desavenças ficam para depois, ou são “esquecidas”. A urgência e a necessidade de vencer a doença não propiciam tempo para se pensar em questões que não são nobres, a não ser salvar vidas.
Um ou outro médico pode vir a se destacar na equipe, que, geralmente, varia de dia para dia, dependendo dos plantões. Esses, às vezes, alcançam o brilho devido à sua eficiência, podendo mesmo adquirir um caráter mágico. A idéia de conjunto de pessoas, todas importantes, para salvar vidas, é fundamental, mas a glória individual de um médico não é eliminada e isso pode ser observado. Assustando a alguns, o objetivo maior desses profissionais, de vencer as doenças e prolongar vidas, provoca desequilíbrio.
Explica-se: a morte é inerente à espécie humana, mas os indivíduos recusam-na, e, hoje em dia, conseguem prolongar a vida por muito mais do que o esperado. Segue-se a essa constatação uma série de paradoxos: tão perto da morte nossa de cada dia (profissionais e pacientes), cada vez mais a ignoram; “lutando” pela espécie, os profissionais afirmam sua individualidade3. Na batalha do UTI, os indivíduos se esquecem de si mesmos e esquecem a própria morte, lembrando do aprendido que os torna eficientes; a utilização do silêncio como arma faz gritar as angústias, e as intervenções violentas e invasoras propiciam vida. Também os jalecos, geralmente brancos, protegem quem vem de fora da contaminação, e, vale perceber, protege quem está dentro da vida lá de fora, que é perigosa e apresenta outras contaminações. O campo é demarcado e procura-se evitar contágio.
No território da UTI de tantos desequilíbrios, incertezas e paradoxos, facilmente se passa da luta pela vida à morte resignada (e vice-versa); do desafio que se impõe ao risco de continuar vivo, ao medo de morrer (e vice-versa). Nada é permanente, sendo um espaço ambíguo, onde se procura controlar, através mesmo da negação e isolamento, o imprevisível. Na UTI se esconde e se denuncia: o paciente que morre, o seqüelado, o que ficou em coma; o profissional que não consegue fazer o diagnóstico não salva sempre, é impotente e onipotente.
Vale ainda evidenciar que, mesmo havendo pontos em comum entre as UTIs, como a presença dos respiradores e a ausência de relógio, cada um tem sua particularidade e termos específicos para a sua rotina. Esses fatos fazem com que se pense na singularidade de cada espaço construído: espaço social e individual.
No espaço da UTI, alguns controles são feitos em relação à temperatura ambiente (baixa e constante), à luminosidade (sempre a mesma, seja dia ou noite), aos ruídos das máquinas e à contaminação. Uma imagem que surge é a de um útero. Ali a pessoa pode viver de novo. Passa por um ambiente parecido com o útero materno onde, a princípio, o ambiente provê as necessidades. Mas o (re)nascimento exige que a “pessoa-bebê” respire por si mesma e que, nas vias do desejo, (re)viva.
Quando uma pessoa é internada em uma UTI, torna-se impotente, incapaz de efetuar uma ação para alívio de sua dor, sede, fome, impossibilitada de andar, mover-se na cama, falar e até mesmo respirar.
Uma primeira vivência de satisfação do bebê será encontrada no registro da necessidade; geralmente uma fome será saciada com o alimento oferecido. Em se tratando de seres humanos, no entanto,essa experiência, apesar de ocorrer em um registro orgânico, inscreve-se ao nível do aparelho psíquico. A partir de então, cada demanda do bebê vincular-se-á com o traço mnésico deixado por essa primeira experiência.
Essa explicação foi elaborada por Freud e faz com que se pense no conceito de realidade psíquica. Vale lembrar que o bebê também pode realizar seu desejo através de uma alucinação, assim como o paciente, através de sua capacidade de pensar, pode manter um controle diante da situação pela qual está passando. No entanto, tanto a alucinação do bebê, como o pensamento do paciente não são suficientes para satisfazer suas necessidades. O bebê dispõe de suas manifestações corporais para anunciar a tensão em que se encontra e precisa do outro competente para aliviar seu estado de privação.
O paciente pode reclamar da comida, água, calor, falta de ar, entre outras coisas, solicitando aportes reais de que carece para acalmá-lo. Os dois, além da satisfação de suas necessidades, dependerão da mão” que dá o que eles solicitam. Os procedimentos necessários à vida do paciente (dieta, oxigênio, medicação, exames, posição, cuidados higiênicos e assim segue), assim como os cuidados com o bebê, como já foi escrito, inscrevem-se ao nível do aparelho psíquico. Nos dois casos, não basta saciar a necessidade, porque existe uma demanda, que é demanda de amor.
O paciente, quando internado na UTI por vezes sofre perdas violentas, tanto fisicamente quanto ao nível de sua singularidade e subjetividade. Perde suas garantias, não sabe como será sua vida depois, tem medo de ser um fardo para a família, de perder o emprego... Fica bastante frágil, desamparado e se encontra em um período difícil. Muitas vezes, precisa (re)significar sua vida, precisa (re)aprender a respirar sozinho. De alguma forma, vivencia a experiência de renunciar aos seus investimentos. Ele ficará afastado da família, amigos, trabalho e lazer. A rotina de sua vida será alterada, passará por um estado de privação, isolamento, entregue aos outros, aos profissionais de saúde.
A forma como cada um vai lidar com essa renúncia e privação, provavelmente, estará relacionada à sua história de vida. Como alguns pacientes conseguem suportar tanta privação? Por que outros esbravejam e até fogem da UTI? Por que outros preferem a morte? Alguns, por fim, terminam perguntando sobre si, sua história, seu vazio, e, ao viverem de novo, podem descobrir que, ao respirarem sozinhos, são responsáveis tanto por sua história passada como pela que virá.
Morto-Vivo: Crônica para uma Morte
Para terminar, vale apresentar um caso clínico. Escrever sobre o caso de um paciente, descrever os caminhos e mesmo as dificuldades vividas não é fácil. Será feito o uso da livre associação ao se apresentar um material registrado, visando a enfocar condições sobre a morte. As vivências são difíceis de serem explanadas e só adquiriram significado a posteriori, sendo enriquecidas enquanto reflexão, mas também reduzidas a um certo esquema que é próprio da teoria.
O paciente verdadeiramente terminal, ou seja, aquele em que o diagnóstico e prognóstico apontam um declínio progressivo para a morte, não tem indicação para UTI. São indicados aqueles que se encontram gravemente doentes, com risco atual de vida, cuja condição é potencialmente reversível. Nesse caso, tem-se os pacientes que estão entre a vida e a morte, e que o avanço da Medicina pode ajudar a mantê-los vivos.
Após um telefonema de um hospital, foi concedida a transferência dessa paciente para nossa UTI melhor equipada, oferecendo maior probabilidade de uma boa evolução clínica.
Essa moça de quinze anos chega apresentando um diagnóstico de insuficiência respiratória e pneumonia. Após a internação, foi constatado pela equipe o diagnóstico de miopatia congênita, que, até então, tinha sido omitido e traria dúvida sobre a indicação para ser aceita na UTI. Assim sendo, o caso era grave e o prognóstico desfavorável. Rapidamente, foi providenciado um esquema de antibióticos e colocaram-na em ventilação mecânica.
A paciente, totalmente dependente da equipe, demonstra ansiedade. Com olhos arregalados, olha para o lugar onde está e para as pessoas que dela se aproximam. Essa paciente, jovem e consciente, mobiliza a equipe. E a ela o estranho assusta.
Ao passar esse momento de mobilização, os profissionais percebem que há uma família do lado de fora, provavelmente angustiada. O que está acontecendo? Não sabem e o desconhecido é marcante. Essa família vem em busca de respostas. Nessa situação de real dependência em relação à equipe de saúde, que faz o diagnóstico e conduz o tratamento, a demanda inicial da paciente e sua família estará voltada para o médico. Por isso, faz-se necessário um contato com os familiares. A palavra dele reveste-se de grande poder e sua informação (objetiva) será subjetivada, decodificada e interpretada de acordo com as vivências singulares características da história de vida da paciente e do lugar que ocupa em seu seio familiar.
Nesse momento, o médico foi franco, apresentando a dificuldade do caso, mas sem se esquecer de que, quando se trata de pessoas, precisa-se “ler”, escutar e compreender a enfermidade a partir do paciente. O prognóstico também depende de como a paciente poderá reagir ao tratamento. Os pais escutam, ficam apreensivos, mas mostram satisfação por considerarem que ali sua filha poderá ser bem cuidada.
A UTI surge como um lugar de possibilidade de vida, embora o risco da morte seja constante. Por que será assim? Fica-se a pensar que o isolamento parece ser uma tentativa de controlar e dominar o imprevisível, a doença/saúde, a morte/vida. Nesse espaço cheio de ambigüidades, os conflitos precisam ser administrados sempre. A questão é lidar com os sentimentos provenientes de todas as pessoas que atuam na unidade. Parece ser necessária aptidão para uma convivência entre Morte /Vida/Fragilidade/Onipotência/Impotência. Na UTI, diante de tamanhas incertezas, tem que se ter cuidado para não haver uma grande desestruturação.
O psicólogo, quando atua em um espaço como a UTI, fica diante da concretude da experiência vivida e participa dos fatos que se transformarão em acontecimentos na vida do paciente e de seus familiares, assim como da construção dos elos da cadeia de signos da história pessoal de cada um.
A evolução do caso, para surpresa de todos, foi boa. Após vinte dias, foi o aniversário da paciente comemorado na UTI junto com seus familiares, a equipe e outros pacientes. A partir de um mês, começa a se tentar o “desmame”4, que é difícil. A utilização de uma cânula metálica, após traqueostomia, para ajudar a paciente a respirar é proposta, mas ela resiste. Seu pai também não aceita. Em desespero, chora e bate na parede. Sempre tinha negado a doença da filha e achava que estava perto de superar essa dificuldade. Pelo contrário, para ela sair do hospital vai ser necessária a presença visível de sua limitação, com a cânula metálica. Há um momento de desestruturação. Pára-se com o “desmame”.
O Natal e o Ano Novo já passaram. Recomeça-se o “desmame”. Agora a paciente reage bem, com o auxílio da cânula, e vai para a enfermaria de adolescentes. Depois tem alta. Vão para casa, mas por pouco tempo. Voltam para a UTI, a família e a paciente. Mais uma vez, recebe alta da UTI. Retorna para a enfermaria. Passa por um caminho já conhecido, sofre, cansa, aceita a morte como parte da vida. Até que, em uma quarta-feira, depois de tanto sofrimento, não tem mais vontade de comer. É hora de se lidar com o inevitável - a morte. A família, a psicóloga e também os médicos ficam com ela até o final. Depois de tanto sofrimento, o pai agradece e diz que vai ficar bem. Ainda tem um outro filho que precisa de seus cuidados.
Qual Não foi a Surpresa...
A princípio, nunca se imagina que uma pessoa possa chegar a completar quinze anos tendo uma miopatia congênita, mas tratava-se de uma pessoa resistente, que lutava determinada pela vida. Parecia que seus pais precisavam de seu sangue vivo para viverem. O sentido da vida deles talvez fosse a cura da filha. Ela, esse lugar ocupava. Lugar de uma paciente viva, com familiares a seu lado o tempo todo, reivindicando melhores tratamentos para vencer a doença.
Essa foi apenas uma das surpresas. Uma outra, talvez mais perturbadora, foi a rejeição ao uso da cânula metálica. Era de se esperar que, para quem queria viver, isto não seria problema, mas foi desestruturante. O mundo caiu. O pai e a filha desesperaram. A mãe mostrava-se preocupada com os dois, mas não demonstrou um sofrimento maior. A paciente se olhava no espelho. Era muito vaidosa. Nunca tinha imaginado que para viver precisaria de uma cânula metálica.
A raiva do pai foi quase incontrolável. Era muito difícil aceitar o limite. Parecia que só naquele momento veio a descobrir que sua filha apresentava problemas sérios para viver. Foram quinze anos para se dar conta de que sua filha tinha dificuldades congênitas. Veio a culpa. Por que foi gerada uma criança assim? Para não sofrer, ficou na fantasia de que sua filha era perfeita. A patologia fora, durante todo esse tempo, negada. Até no seu pedido de vaga para a UTI, ela foi omitida.
A equipe se surpreendia com a dedicação daquele pai. Chamou a atenção sua necessidade de estar ao lado da filha. Chegou a perder o emprego. Depois de externar sua raiva e revolta, a situação mudou. Foi procurar outro emprego. Continuava indo todos os dias à UTI, mas não passava o dia todo com a filha. Parecia que já não se sentia tão culpado pela situação.
A família e a paciente revivem suas deficiências. Agora, podendo olhar de uma outra maneira. Um fantasma caiu e depois até provocou riso, como o palhaço quando cai. Outras fantasias puderam aparecer. A família começou a poder lidar com a morte. “Nem o sol, nem a morte podem ser olhados de frente”. (Rodrigues, 1996).
Nesse tempo todo, a morte foi projetada para o futuro e essa criança foi-se mantendo viva. Pelos relatos posteriores dos pais parecia, em alguns momentos, que fora “ressuscitada”, e chegou mesmo a andar.
Por fim, uma outra surpresa: a aceitação do pai depois do último suspiro. Ele ficou ao lado da filha até o fim, e uma surpresa maior: os médicos também. Um chegou mesmo a chorar no final. O pai também chorou. A psicóloga arrumou os pertences da paciente. Olhou mais uma vez para a menina. Agora ela se foi, parecia em paz. Descemos com o corpo. O pai abraça a psicóloga. Diz que está bem. Vai cuidar de seu outro filho. Parece que, para que o pai pudesse suportar essa falta já anunciada, foi necessário ele se (des)identificar desse objeto subjetivo, a filha, para que ela pudesse morrer enquanto objeto objetivo, sem que ele morresse também. Assim, ele até pôde constituir um projeto para o futuro. O luto começou.
Nesse caso, entre a vida e a morte na UTI, alguns encontros foram possíveis. Entrou-se em confronto com a morte, enquanto vivência de castração, foi-se tocado, incomodado e transformado. Os vínculos afetivos possibilitaram a superação da tendência ao impessoal, ao sofrimento e à percepção da morte iminente, diante do medo de estar só.
Muitas coisas não puderam ser compreendidas - a ausência da mãe, a desistência de viver da paciente... Melhor não se compreender. Há sempre algo que escapa... Melhor assim, senão é possível se acreditar na imortalidade...
© 2011 Conselho Federal de Psicologia
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