quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E A SAÚDE PÚBLICA : RELATO DE EXPERIÊNCIA DA PRÁTICA DA PSICOLOGIA EM UMA UNIDADE DA SAÚDE DA FAMÍLIA.


RESUMO

Participaram dessa experiência usuários atendidos pela equipe multidisciplinar que haviam sido encaminhados para o serviço de Psicologia. No contexto estudado, as estratégias utilizadas foram entrevistas, visitas domiciliares, conversas informais e interação nos espaços comunitários. Essas estratégias se mostraram importantes para o mapeamento da realidade comunitária, das redes de serviços e para verificar como estas funcionam. No que se refere às questões éticas, observou-se a importância de romper os padrões de atendimento psicológico tradicional, quando se constrói uma ética que abrange os princípios da interdisciplinaridade. Observou-se que estratégias de atuação em comunidade na perspectiva da Psicologia comunitária podem favorecer ações mais integradas às necessidades da população atendida pela ESF. Tal experiência apontou a importância do questionamento sobre os modelos de atuação prestados pela Psicologia nos serviços de saúde pública, se for discutida uma proposta de atuação que esteja comprometida com o fortalecimento e o engajamento comunitário para o exercício e a garantia da cidadania dos usuários.


Este trabalho partiu de uma experiência de estágio em Psicologia comunitária realizada em uma instituição localizada em Santa Maria, RS. O objetivo foi analisar a prática da Psicologia comunitária e as suas estratégias de intervenção em comunidades atendidas por uma Unidade de Saúde da Família (USF). Para a escolha do local, levou-se em conta a importância, cada vez maior, da inserção de psicólogos na área da saúde pública, uma vez que as experiências de saúde e doença são marcadas por dimensões subjetivas, e estas, por sua vez, constituem um dos principais objetos de estudo da Psicologia (Dimenstein, 2006). O contexto da saúde pública, incluindo a Estratégia de Saúde da Família (ESF), é um campo fértil para a atuação do psicólogo, pelas mudanças (ou necessidades de mudança) de hábitos e de comportamentos decorrentes das dificuldades do cotidiano da população usuária dos serviços de saúde (Góis, 2005).

A inserção da Psicologia no contexto da saúde pública é recente, e tem como circunstância favorável a esse processo as mudanças no sistema de saúde pública brasileiro e o crescimento da Psicologia como profissão no Brasil (Dimenstein, 1998). A Psicologia, ao se inserir nesse espaço, buscou adaptar os seus modelos de atuação, que, em geral, estavam voltados para os contextos clínicos nos consultórios particulares (Dimenstein, 2000). No decorrer de sua inserção no campo da saúde pública, o modelo clínico tradicional passou a ser questionado por não levar em consideração as diferenças apresentadas, tanto pela população atendida nos serviços públicos como nos objetivos e nas características específicas desses serviços. Tal modelo privilegiava o enfoque individual em detrimento do contexto social e histórico, gerando, assim, uma prática psicológica normatizante de adequação e de ajustamento do indivíduo (Moura, 1999). 

Segundo a autora, o modelo tradicional passou a ser contrastado pelas novas demandas geradas pela difícil realidade apresentada pela população brasileira, tais como: aumento da violência urbana e do desemprego e condições precárias de moradia e saneamento básico. Apesar disso, na sua maioria, o serviço público atende a população de classes socioeconômicas desfavorecidas, embora saiba que as questões da ausência ou da ineficiência da garantia desses direitos irão se refletir na saúde dessa população. Diante do exposto, os modos de atuação do psicólogo, calcados em modelos universalizantes de saúde, passaram a ser relativizados por não serem experienciados da mesma forma pelas diversas classes sociais brasileiras (Dimenstein, 2000). Assim, um trabalho voltado para as classes populares passa a demandar um novo olhar da Psicologia para o sofrimento psíquico gerado nessa população (Lima & Nunes, 2006).

Com efeito, a constante preocupação com a melhora da qualidade de vida das pessoas menos favorecidas fez com que as estratégias de intervenção e o foco da Psicologia se voltassem para o contexto popular e, com isso, buscassem técnicas que estivessem próximas dessa realidade (Góis, 1993). Diante disso, surge a Psicologia social comunitária, que entende o indivíduo como uma realidade sociohistórica, situado em uma estrutura social de classe e em um determinado espaço histórico, geográfico, social, cultural, econômico, simbólico e, por isso, ideológico, como uma resposta às críticas do modelo tradicional da Psicologia (Góis, 2005).

O problema central da Psicologia comunitária não é a relação saúde e doença, prevenção e tratamento, mas a construção do indivíduo como sujeito de direitos, fortemente envolvido com a sua realidade social, que está ligada ao contexto onde reside. Por isso, o espaço de atuação do psicólogo passa a ser o lugar/ comunidade (Góis, 1993). Cabe ao psicólogo comunitário estudar os aspectos que impedem e favorecem a pessoa a se tornar sujeito de direitos em uma comunidade, trabalhando com ela a partir das condições relativas ao lugar onde mora. Além disso, a Psicologia comunitária é uma área da Psicologia social que estuda o psiquismo advindo do modo de vida do lugar/comunidade, as relações e representações, a identidade, a consciência, a identificação e a pertinência dos sujeitos aos grupos comunitários (Góis, 1993).

Para Vasconcelos(1994), o trabalho do Psicólogo comunitário é interdisciplinar, realizado por equipes multiprofissionais, com formação generalista. No campo da saúde, esse profissional atua como assessor e treinador de agentes de Saúde Mental. Para o psicólogo comunitário, o saber científico é relativizado diante do saber popular, sendo este uma importante via para o acesso à Saúde Mental da população (Vasconcelos, 1994). O psicólogo comunitário deve analisar o contexto da comunidade a partir de conhecimentos científicos e do saber popular, utilizando valores éticos de respeito, solidariedade e compromisso (Sarriera, 2008). Sendo assim, a Psicologia comunitária foi escolhida como proposta teórica e metodológica para esse estágio por entender a atividade psíquica como decorrente dos modos de vida dos locais onde a pessoa reside, sendo o espaço de moradia um local privilegiado de intervenção (Góis, 1993). Neste trabalho, serão apresentados a contextualização do estágio e o processo de inserção: mapeamento da realidade comunitária, estratégias de intervenção frente ao funcionamento institucional e a entrevista como instrumento para conhecer a realidade comunitária.

Contextualização do estágio

A Unidade de Saúde da Família (USF) estudada surgiu na comunidade no ano 1988, embora o Programa Saúde da Família tenha sido implantado somente em 2004. Antes disso, ela era considerada Unidade Básica de Saúde, que é conhecida, entre os moradores, como posto de saúde. Anteriormente, estava alocada em uma antiga casa ao lado de uma escola municipal, que formava o ponto de confluência entre três grandes bairros periféricos da cidade de Santa Maria - RS. Por causa de sua localização geográfica e das necessidades dos moradores dos bairros, a USF atendia, no ano 2008, aproximadamente 9.700 usuários, um número excessivo e muito acima de suas capacidades estruturais e técnicas, principalmente se se levar em conta a precária estrutura oferecida: uma pequena sala de espera, com banheiros constantemente interditados, e salas de consultas visitadas por ratos e baratas. 

Em dias de chuva, havia muitas goteiras, infiltração nas paredes e água escorrendo pelos fios de luz. No entanto, mesmo com todas as dificuldades estruturais, diariamente, a partir das cinco horas da manhã, uma funcionária distribuía as fichas do dia para o atendimento com os profissionais. Em função do grande número de pessoas atendidas pela equipe, as filas começavam cedo, e, muitas vezes, nem todas conseguiam ser contempladas pelo atendimento naquele dia. Dessa maneira, mesmo que a estrutura da equipe técnica do local fosse composta por dois médicos, dois enfermeiros, um técnico em enfermagem, um dentista, um auxiliar de dentista, dois estagiários de Medicina, estagiários rotativos, a cada dois meses, de Fisioterapia, Farmácia e Nutrição e dois estagiários de Psicologia, nem sempre era possível o atendimento à excessiva demanda.


Em relação aos usuários do serviço de saúde, ainda que houvesse um público fixo formado pelos pacientes em situação de doença crônica, que buscavam medicações com certa regularidade, o público usuário do serviço variava muito em idade, gênero e classe social, pois os três bairros possuíam uma grande diversidade no que diz respeito à situação socioeconômica. Entretanto, quase todas as pessoas residentes da região, independentemente de pagarem planos de saúde particulares, buscavam atendimento no posto e recebiam periodicamente as visitas dos Agentes Comunitários em Saúde (ACS). Além desse variado público, que era formado por gestantes, doentes crônicos, crianças e idosos, pode-se dizer que dois públicos, embora com menos frequência, se destacavam: o de adolescentes estudantes da escola ao lado, que, por vezes, buscavam preservativos e faziam curativos após acidentes na escola, e as mulheres acima de 40 anos cuidadoras de pacientes acamados, que, quando não recebiam os medicamentos trazidos pelos agentes, se deslocavam até o posto de saúde ou ainda iam em busca de consultas médicas para dores crônicas.

Processo de inserção: um breve levantamento da realidade comunitária

O processo de inserção, contato e familiarização é o principal instrumento de informações, e, à medida que estas vão sendo obtidas, delimitam aspectos e fenômenos possíveis para o desenvolvimento do trabalho de intervenção. Esses três elementos, juntos, funcionam como uma estratégia importante para a caracterização e o levantamento de informações sobre a realidade cotidiana dos moradores da comunidade (Freitas, 1998). Para Góis (2008), é importante não só o processo de inserção pela observação como também pela vivência do psicólogo no cotidiano dos moradores, com profundidade e comprometimento. Segundo Freitas (1998), para uma inserção comprometida, é necessária uma relação aprofundada entre os conhecimentos da Psicologia e as características da comunidade. Cada comunidade apresentará uma dinâmica de funcionamento com aspectos fundamentais para o trabalho, como: o contexto sociopolítico-geográfico, a influência do cenário dominante na vida diária e a forma como essa influência é entendida por seus membros (Freitas, 1998). Por isso, é importante o conhecimento dos códigos, dos significados atribuídos pelos próprios moradores à sua realidade para que assim seja possível a compreensão de como vivenciam e lidam com o seu cotidiano (Góis, 2008).

Assim, como primeira etapa da inserção, o contato inicial com os moradores da comunidade, foi realizado um processo de familiarização com o objetivo de aproximar os novos estagiários à comunidade, ou seja, ou seja, aproximá-los aos moradores e ao trabalho já realizado pelos estagiários anteriores. Nesse contato, os ex-estagiários e a supervisora de Psicologia relataram os casos atendidos aos estagiários atuais, assim como abordaram algumas características da comunidade e do trabalho feito pela Psicologia durante aquele ano. Nessa etapa, também foram feitas visitas domiciliares conjuntas, com os novos e os antigos estagiários, a alguns moradores atendidos na área de abrangência da ESF, como uma forma de apresentação daqueles que estavam chegando e fechamento de etapa daqueles que terminavam o estágio curricular.

Após esse processo inicial de aproximação e familiarização, foram desenvolvidas ações para o levantamento de informações sobre a comunidade, com o objetivo de conhecer as características próprias do local, para construir o plano de estágio. Essas atividades foram realizadas por meio de conversas informais com os usuários da USF, não só no espaço institucional como também em qualquer local pertencente à comunidade. Tal procedimento exige do psicólogo abertura e flexibilidade para atuar em espaços abertos e não convencionais, muito diferentes de um setting-padrão com mesa, cadeira ou divã. Além disso, o psicólogo precisa ter iniciativa, ir onde as pessoas estão, a fim de buscar oportunidades de interação, rompendo, assim, o modelo que espera que a população procure o serviço psicológico.

No processo de inserção, foram analisadas a história do local, as redes de apoio existentes (creches, escolas, lazer, etc.), o vínculo com a equipe de saúde, os espaços do cotidiano (mercados, bares, padarias, farmácias, ponto de ônibus, coleta de lixo) e, principalmente, a percepção dos moradores sobre a comunidade em que vivem. Tal etapa foi fundamental para que os estagiários entrassem em contato com as necessidades vivenciadas pelos moradores e, com isso, voltassem o seu trabalho para a realidade concreta da população. Além disso, a inserção contribuiu para que a construção das estratégias de trabalho fosse pertinente à realidade e ao contexto dos usuários, e assim tivesse maior engajamento e participação da comunidade.

As estratégias de intervenção frente ao funcionamento institucional

Frente às informações obtidas sobre/com a comunidade a partir de um primeiro contato e da leitura teórica dos principais conceitos e ações da Psicologia comunitária, foi possível discutir a supervisão a respeito dos objetivos do estágio e, essencialmente, a construção de um plano de ação fundamentado nos alicerces histórico e socioculturais já existentes no local, que teve como objetivo principal a intervenção voltada para a prevenção primária em saúde, com ênfase na potencialização do indivíduo como sujeito de sua própria realidade. Essa prática envolvia conhecimentos, instrumentos e métodos de Psicologia comunitária em intervenções individuais e coletivas através de práticas educativas, preventivas e comunitárias.

A partir da construção do plano, partiu-se para a apresentação da proposta de estágio em uma reunião formada pela equipe técnica e por agentes comunitários de saúde da USF. Na reunião, foram explicados os objetivos do estágio e esclarecidos os fundamentos básicos da Psicologia comunitária. Percebeu-se, a partir do modo como algumas ações foram colocadas em questão pela equipe, que o imperativo das práticas da Psicologia clínica tradicional continua sendo, em algumas unidades de saúde, a única forma considerável, legítima e aceitável de atuação da Psicologia. Confirmouse a consolidação dessas ideias no local ao se observar os poucos e restritos espaços ocupados pela Psicologia até então, que se restringiam a: atendimentos em salinha do fundo e a visitas direcionadas pela equipe de saúde somente para aqueles moradores considerados muito debilitados psíquica e/ou fisicamente.


A inserção nesse local passou por dificuldades, muitas vezes obstaculizadas por alguns membros da instituição, talvez desmotivados pela pouca difusão de conhecimentos acerca da Psicologia comunitária entre alguns profissionais das equipes de saúde, ou até mesmo pela própria falha da formação acadêmica em não desmistificar, para os alunos de Psicologia, a intervenção clínica como única forma do fazer psi. Assim, para que a proposta de estágio finalmente fosse mantida nesse local, foram necessárias negociações com a equipe para que as intervenções e os encaminhamentos individuais, que configuravam a Psicologia anteriormente, não sofressem bruscas mudanças. Optou-se conjuntamente pela continuação de alguns atendimentos clínicos individuais, priorizando, porém, as visitas e os atendimentos domiciliares, assim como a participação junto aos grupos já existentes; como o de hipertensos e diabéticos, gestantes e educação sexual para adolescentes.

A área clínica ainda é o modelo hegemônico no saber-fazer acadêmico, e tal modelo foi deslocado para o contexto da saúde pública sem considerar a diversidade da população atendida e a política de atendimento proposta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a ESF (Dimenstein, 2000). Os obstáculos colocados pela instituição consistiram em desvalorizar uma proposta que previa a reversão desse quadro individual e curativo para a perspectiva de prevenção e de investigação, análise e compreensão coletivas. Da mesma forma, os próprios profissionais da saúde parecem ainda encontrar dificuldades em se adaptar às exigências propostas pelo SUS para o atendimento na saúde pública. A ênfase na formação do profissional de saúde tem sido diagnóstico, cuidado, tratamento, prognóstico, etiologia e profilaxia das doenças e agravos (Ceccim & Feuerwerker, 2004). Devido a isso, o olhar do profissional, muitas vezes, se centraliza no aspecto técnico do atendimento e deixa de lado todos os fatores que envolvem a produção de saúde e doença e a integralidade do cuidado em saúde (Macedo & Dimenstein, 2009). E tal perspectiva tem sido considerada uma das maiores barreiras na execução das políticas de saúde, por estar focada em um modelo biomédico que privilegia a cura pela medicação em vez da prevenção (Traverso- Yépez, 2001).

A entrevista como instrumento para conhecimento da realidade comunitária

Nas entrevistas, utilizou-se um roteiro semi estruturado que continha aspectos como a história da comunidade (surgimento, participação, mudanças ocorridas), mapeamento das redes de serviço (escola, hospital, água, luz...), realidade econômica (como vivem, renda familiar), escolaridade (leitura e escrita), lazer (diversão), dificuldades mais apresentadas (doenças e problemas sociais) e a participação comunitária (atividades e dificuldades). Assim, a entrevista semi estruturada teve como objetivo conhecer o modo de vida dos moradores da comunidade que utilizam os serviços da USF, incluindo os atendimentos psicológicos, com a análise dos aspectos sociais, culturais e históricos desses moradores.

Observou-se, nas entrevistas, a importância de se considerar as dimensões como o ambiente e os recursos individuais e coletivos, sejam eles materiais, psicológicos ou sociais, que favoreçam a saúde dos moradores entrevistados. A entrevista é uma forma de compreender a realidade, o contexto específico, focando, também, a potencialização dos aspectos saudáveis (Rocha, Boeckel, & Moreira, 2008). Percebeu se que os moradores, nos primeiros contatos, centralizavam os aspectos negativos de sua vida e da sua comunidade, principalmente os que se relacionavam à doença. Seguindo a perspectiva do SUS sobre a humanização nos atendimentos, a escuta é uma das etapas mais importantes no cuidado e na compreensão da realidade dos seus usuários, para que a doença ou o adoecimento não seja visto como o elemento mais importante na vida da pessoa (Ministério da Saúde, 2004). 

Tal procedimento foi privilegiado nas entrevistas realizadas para que fossem retomados aspectos que circundam a saúde na vida das pessoas, como os vínculos afetivos, tanto na família como na vizinhança, e os eventos comunitários socializadores, como as mateadas (rodas de chimarrão), que comumente reúnem as pessoas para tomar chimarrão. A escuta humanizada permitiu ampliar as percepções de si mesmo e das realidades dos moradores, por vezes encaminhados ao atendimento psicológico, percepções essas que, em muitos casos, estão restritas aos seus sintomas de doença.

Nas entrevistas, a posição do psicólogo é a de facilitador, que faz com que as próprias pessoas construam o seu processo de autoconhecimento e de sua realidade (Rocha, Boeckel, & Moreira, 2008). Uma das possibilidades de facilitação seria conhecer os serviços disponíveis na comunidade e na rede de atendimento do Município, para que outras políticas públicas possam ser acionadas caso o morador delas tenha necessidade. Foi possível observar que muitos moradores não conheciam o funcionamento da rede de serviços e nem quais deles estavam disponíveis. Tal fato mostra a importância de se ampliar as informações sobre as políticas públicas existentes como estratégia para a melhoria da saúde dos moradores.

Visita domiciliar e intervenção comunitária

Outra estratégia adotada foram as visitas domiciliares, como forma de inserção e processo de intervenção, que ocorreram duas vezes por semana, e que duravam entre 30 minutos a uma hora, dependendo do tipo de demanda e do profissional da USF que acompanhava os estagiários. Os critérios para a escolha das famílias seguiram uma lista de espera, preenchida pela equipe de profissionais de saúde e pelos atendentes. Os objetivos das visitas foram analisar a comunidade e as famílias atendidas e avaliar a necessidade de acompanhamento psicológico domiciliar. Para este último, o público-alvo era as pessoas acamadas por algum tipo de doença crônica e/ou seus cuidadores, que, impossibilitados de se locomover devido aos cuidados cotidianos que prestavam, padeciam de adoecimentos psíquicos, tais como depressão, desesperança, carência de autocuidados ou problemas físicos somatizados.

Para a realização das visitas domiciliares, foram feitos contatos com os agentes comunitários e avaliada a disponibilidade de acompanhá-los nas visitas domiciliares, já que são eles os principais responsáveis, na ESF, por essa atividade. A escolha das pessoas a serem visitadas foi feita pelos agentes, que utilizaram como critério as famílias que passavam por algum conflito emocional ou manifestações de tristeza, como choro ou queixas sobre a sua vida. Os encaminhamentos também foram realizados pelos profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, dentista), por escrito ou verbalmente.

A visita domiciliar é uma das estratégias de intervenção na comunidade, e é realizada em equipe. Cabe ressaltar que essa intervenção não é uma prática específica dos psicólogos, ou seja, foram os trabalhadores sociais os primeiros profissionais a utilizarem essa prática (Rocha et al., 2008), a saber, ainda há escassez de literatura a respeito de como proceder em uma visita domiciliar dentro dos parâmetros da intervenção psicológica.

A visita domiciliar permite ao profissional criar um relacionamento afetivo e amistoso com a comunidade envolvida, pois ele está adentrando seu lar, sua casa, sua intimidade, mantendo, assim, interações, ou seja, relacionamento interpessoal (Laham, 2004). Para a autora, tal intervenção permite a obtenção de dados mais fidedignos sobre a saúde das famílias, porém, para que isso aconteça, é necessário estabelecer confiança entre os membros da equipe de saúde e os da família, para que esta última se sinta segura com as ações desenvolvidas pelos profissionais (Nogueira & Fonseca, 1997).

Durante as primeiras visitas realizadas, surgiram alguns questionamentos em relação à investigação da demanda, pois a solicitação do serviço da Psicologia não era feita pelos próprios moradores, e sim, pela equipe. Segundo Rocha, Boeckel e Moreira (2008), é importante avaliar quem solicita as visitas domiciliares, assim como o seu significado e as suas implicações. Sendo assim, o desafio era tornar a visita significativa para os moradores que estavam sendo visitados.


A presença dos agentes de saúde sempre foi um aspecto facilitador para a aproximação com os moradores, já que eles apresentavam grande vínculo com as famílias. Para que esse laço também fosse estabelecido com os estagiários, foi necessária a inserção no contexto familiar dos moradores, utilizando-se de estratégias como: falar de assuntos do cotidiano, que as pessoas relatavam, comentar sobre os objetos expostos nas casas que poderiam demonstrar características da família, como fotos, quadros, imagens de santos, etc. Outra forma foi a interação com as atividades que estavam sendo desenvolvidas durante a entrevista, como tomar chimarrão, participar do lanche, auxiliar em atividades domésticas como recolher roupas e lixo, dialogar sobre os programas assistidos na televisão e conversas com as vizinhas. Quanto mais efetivo for o relacionamento e o envolvimento do profissional com a família, maior será o seu reconhecimento como profissional (Nogueira, 1997).

Na prática comunitária, é importante que o psicólogo tenha sensibilidade e habilidade técnica em relações humanas, para que o vínculo com a comunidade possa ser estabelecido positivamente (Rocha et al., 2008). Nessa intervenção, foi necessário que as estagiárias desenvolvessem habilidades e disposição para diálogos e aproximação com as pessoas que frequentavam a USF.

No Brasil, a visita domiciliar não é utilizada com frequência nos serviços públicos de saúde, apesar de o SUS definir essa prática como fundamental para a educação sanitária (Rocha et al., 2008). De acordo com Amaro (2003) a visita domiciliar é uma prática investigativa que pode ser realizada com um ou mais profissionais juntamente ao morador no seu próprio meio social e/ou familiar. Na USF em questão, as visitas domiciliares são atividades específicas dos agentes de saúde, que as realizam sem a presença dos demais profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, exceto em casos excepcionais, de acordo com a gravidade do caso, e se não há possibilidade de o usuário chegar até a USF.

Em algumas visitas, participaram estudantes de Nutrição, Fisioterapia, Enfermagem e Farmácia, sendo todos da mesma instituição de ensino da qual as estagiárias faziam parte. Nessas visitas aos moradores, percebia-se a grande preocupação com o controle medicamentoso bem como com o monitoramento de sua utilização. A conduta da equipe era de instrução e orientação, na tentativa de convencer os moradores a tomar a medicação de acordo com a prescrição médica. Conforme Laham (2004), cabe ao psicólogo, nas visitas, fazer uma escuta diferenciada no sentido de compreender e de questionar as motivações que levam uma pessoa a acatar ou não as prescrições médicas. Na perspectiva da Psicologia comunitária, as pessoas atendidas nos serviços de saúde não devem ser vistas apenas pela doença, mas vistas no seu todo (Vasconcelos, 1994).

É possível entender que, nessa proposta de intervenção comunitária, há um vínculo diferenciado entre usuário e psicólogo, por isso os debates contínuos que tangem as questões éticas são sempre pertinentes nas discussões sobre visita domiciliar, pois, nesse vínculo estabelecido, as margens que tornariam distantes os referenciais de dependência em relação ao profissional e a confusão de funções atribuídas à figura do psicólogo por parte da comunidade, por vezes, podem parecer pouco visíveis, emergindo, assim, a necessidade de repensar e de reestruturar continuamente as ações. No entanto, são comuns perguntas sobre a vida pessoal das estagiárias, convites para festas, aniversários, rodas de chimarrão com familiares e vizinhos, agrados com presentes, cafés e lanches, convites e atitudes que foram típicas dos moradores que recebiam visitas e atendimentos domiciliares. Esses comportamentos foram entendidos como forma de vínculo, de retribuição, e, principalmente, um processo de aquisição de confiança frente a alguém até então tido como estranho em sua moradia. Muitas vezes, a participação em festas e eventos familiares fez parte de estratégias de fortalecimento das redes de apoio familiar, atentando para que fosse delegado ao psicólogo um papel de mediador de informações a respeito da realidade apresentada (Laham, 2004).

Os psicólogos, nesse contexto, devem estar cientes, acima de tudo, de que “quem dita as regras são os donos da casa”, os pacientes e seus familiares, e que o espaço domiciliar deve ser ocupado respeitosamente, para que os moradores não percebam a visita dos profissionais como uma invasão (Laham, 2004). O espaço estabelecido na visita, nessa prática de estágio, seguiu a mesma lógica, ou seja, coube ao morador transmitir ao psicólogo o local de preferência para recebêlo, bem como as pessoas que ele permitia que participassem da conversa.

Além desse aspecto, foi de grande importância o estabelecimento de diálogos com os demais profissionais da saúde, porque as informações obtidas nas visitas foram compartilhadas com o objetivo de propiciar uma visão mais integral do usuário. Isso fez com que a ética, antes restrita ao psicólogo e ao paciente no contexto clínico no consultório, fosse reavaliada para que se tornasse uma ética partilhada entre toda a equipe de saúde.

Considerações finais

A experiência de estágio realizada em uma Unidade de Saúde da Família (USF) permitiu analisar como estratégias de atuação em comunidades, na perspectiva da Psicologia comunitária, podem contribuir para ações mais integradas às necessidades da população atendida pela ESF. No contexto da saúde pública, os psicólogos comunitários podem buscar informações acerca da realidade comunitária, das redes de serviços, do modo como funcionam, das suas potencialidades e dificuldades, trabalhando, assim, de forma preventiva. As estratégias utilizadas, como entrevistas, visitas domiciliares, conversas informais e interação nos espaços comunitários como padarias, escolas e a própria USF, levaram a uma avaliação mais ampla da realidade dos usuários do serviço da equipe da ESF. Tais procedimentos permitiram que os usuários não fossem vistos apenas por meio dos sintomas das doenças, mas também pelos fatores que pudessem auxiliar no seu tratamento de saúde.

Nessa experiência, não foi possível colocar em prática grande parte das possibilidades de intervenção de que a Psicologia comunitária dispõe, isso devido às exigências institucionais que estavam mais focadas no atendimento à doença, por meio do atendimento clínico, e não em práticas de prevenção. A ênfase em um modelo de Psicologia clínica centrada no atendimento individual de usuários que apresentavam um comprometimento maior na saúde dificultou o planejamento de ações mais voltadas para a prevenção e para a promoção de saúde, e, principalmente, para o fortalecimento da cidadania, como grupos de convivência, reuniões de líderes comunitários, etc. 

Apesar disso, as estagiárias se inseriram nas atividades de grupo existentes na USF, algumas relativas a doenças específicas e outras a oficinas multiprofissionais, com o objetivo de favorecer intervenções que promovessem a saúde, uma participação mais ativa dos usuários nas reuniões e o fortalecimento de vínculos afetivos entre os membros do grupo. Além dessa inserção, as estagiárias buscaram ampliar o seu conhecimento sobre a comunidade que a ESF abrangia, assim como os modos de vida dos moradores. De acordo com Góis (1993), a vida comunitária reflete as atividades do psiquismo, principalmente aquelas que impedem o sujeito de ser um sujeito de direitos. Assim, as conversas informais nos próprios locais comunitários, como nas visitas realizadas, foram importantes para a vinculação das estagiárias com a comunidade e com os seus moradores.

As intervenções realizadas em forma de entrevistas, visitas e atendimentos domiciliares são ainda intervenções recentes no campo da Psicologia, e, por isso, os seus procedimentos ainda precisam ser mais esclarecidos e discutidos. Com relação à visita domiciliar, constatou-se a importância de se observar a pessoa atendida e de verificar como ela define o seu espaço de moradia, mostrando ao psicólogo quem pode participar das entrevistas e das visitas.
Logo, frente ao atendimento domiciliar, ainda há muito a ser discutido sobre a ética do profissional nessa realidade, tendo em vista ser essa uma prática que rompe os padrões tradicionais do atendimento psicológico e também pelo fato de tratar-se de um modelo de atendimento interdisciplinar, geralmente realizado com profissionais de diferentes áreas, o que faz emergir a necessidade de se pensar em uma ética profissional pautada na atuação conjunta, que envolva reflexões em torno do compartilhamento de informações obtidas durante o atendimento, tanto no âmbito de reuniões quanto na escrita dos prontuários.

Por fim, a inserção da Psicologia comunitária nessa USF mostrou-se um desafio, por tratar-se de uma perspectiva ainda pouco conhecida pelos demais profissionais da saúde e pela predominância do modelo de atendimento clínico individual. Tal fato aponta a necessidade de se questionar os modelos de atuação prestados pela Psicologia nos serviços de saúde pública e de verificar se esses modelos atendem às demandas propostas pelo SUS. Por outro lado, a inclusão de estágios em Psicologia comunitária, principalmente nos serviços de assistência à saúde, permitiu a aproximação de acadêmicos com uma proposta de Psicologia comprometida com o fortalecimento e o engajamento comunitário para o exercício e a garantia da cidadania.


Referências
Amaro, S. (2003). Visita domiciliar: guia para uma abordagem complexa. Porto Alegre: AGE.         [ Links ]
Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 53-81.         [ Links ]
Dimenstein, M. D. B. (2000). A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde. Estudos de Psicologia, 5(1), 95-121.         [ Links ]
Dimenstein, M. D. B. (2006). A prática dos psicólogos no Sistema Único de Saúde/SUS. In Conselho Federal de Psicologia, I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS (pp. 8-16). Brasília, DF: Editora do Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]
Ceccim, R. B., & Feuerwerker, L. C. M. (2004). Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Caderno de Saúde Pública, 20(5), 1400-1410.         [ Links ]
Freitas, M. F. Q. (1998). Inserção na comunidade e análise de necessidades: reflexões sobre a prática do psicólogo. Psicologia, Reflexão e Crítica, 1(11), 175-189.         [ Links ]
Góis, C. W. L. (1993). Noções de psicologia comunitária. Fortaleza, CE: Edições UFC.         [ Links ]
Góis, C. W. L. (2005). Psicologia comunitária: atividade e consciência. Fortaleza, CE: Publicações Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais.         [ Links ]
Góis, C. W. L. (2008). Saúde comunitária: pensar e fazer. São Paulo: Editora Hucitec.         [ Links ]
Laham, C. F. (2004). Peculiaridades do atendimento psicológico em domicílio e o trabalho em equipe. Psicologia Hospitalar, 2(2). Recuperado em 13 de agosto de 20111 de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-74092004000200010        [ Links ]
Lima, M., & Nunes, O. M. (2006). Práticas psicológicas e dimensões de significação dos problemas de Saúde Mental. Psicologia: Ciência e Profissão, 26(2), 294-311.         [ Links ]
Macedo, J. P., & Dimenstein, M. D. B. (2009). Psicologia e produção no campo do bem-estar social. Psicologia e Sociedade, 21(3), 293-300.         [ Links ]
Ministério da Saúde. (2004). Humaniza SUS: a clínica ampliada. Brasília, DF; Ministério da Saúde.         [ Links ]
Moura E. P. G. (1999). A psicologia (e os psicólogos) que temos e a psicologia que queremos: reflexões a partir das propostas curriculares (MEC/SESU) para os cursos de graduação em psicologia. Psicologia Ciência e Profissão, 19(2), 10-19.         [ Links ]
Nogueira, M. J. C., & Fonseca, R. M. G. S. (1997). A visita domiciliária como método de assistência de enfermagem à família. Revista Escolar de Enfermagem, 11(1), 28-50.         [ Links ]
Rocha, K. B., Boeckel, M. G., & Moreira, M. C. (2008). La entrevista y la visita domiciliaria en la práctica del psicólogo comunitario. In E.Saforçada, & J.C. Sarriera (Eds.), Enfoques conceptuales y técnicos em psicologia comunitária (pp.189- 198). Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]
Sarriera, J. C. (2008). Análise de las necessidades de un grupo o comunidade: la evaluación como processo. In E.Saforçada, & J. Sarriera, (Eds.), Enfoques conceptuais en psicologia comunitária (pp.137-150). Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]
Traverso-Yépez, M. (2001). A interface psicologia social e saúde: perspectivas e desafios. Psicologia em Estudo, 6(2), 49-56.         [ Links ]
Vasconcelos, E. M. (1994). O que é psicologia comunitária (6a ed.). São Paulo: Editora Brasiliense.         [ Links ]

Recebido 13/12/2010 
1ª Reformulação 18/11/2011 
Aprovado 10/1/2012

Conselho Federal de Psicologia
                                                          SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B
                                                    Edifício Via Office, térreo sala 105
                                                     70070-600 Brasília - DF - Brasil
                                                           Tel.: (55 61) 2109-0100
                                                                        
                                                              

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

VALE A PENA PENSAR.




VOCE ENTENDE O QUE REALMENTE TE DEIXA FELIZ?



E a época não poderia ser melhor. É nesse momento, a alguns dias do Natal e Ano Novo, que observamos o maior frenesi consumista do ano. Comprar é a palavra que enche as árvores de Natal de presentes e embalagens, mas esvazia o sentido das comemorações.
O projeto Elevme criou um vídeo para disseminar a mensagem de conscientização por um consumo mais inteligente. “Acreditamos que para sermos felizes precisamos consumir mais. Isso aumenta o faturamento das empresas e o PIB. Mas e a nossa felicidade? Vivemos dessa forma e agimos como se não houvesse outro jeito de viver”. E sugere: “O que importa não é o quanto você tem, mas o que você faz com o que você tem, como você aproveita seu tempo ou cuida da sua saúde, por exemplo”.

O Elevme é um aplicativo no qual você escreve e compartilha experiências de consumo. É possível medir o quanto as experiências “abastecem” a sua felicidade e descobrir em quais contextos você se sente mais feliz.

O vídeo aborda uma forma de consumir baseada nos indicadores propostos para avaliar a FIB (Felicidade Interna Bruta) dos países – e não mais o PIB (Produto Interno Bruto). O exemplo vem do Butão, pequeno país entre a Índia e a China que considera ferramentas diferentes do resto do mundo para avaliar o bem-estar da sua população e o desenvolvimento da economia.

Os economistas do FIB defendem que, sozinho, dinheiro não traz progresso e que, na hora de medir a riqueza de um país, a felicidade da população também é importante. – Entenda mais sobre a Felicidade Interna Bruta neste post.

Comente: você acha que precisa repensar seus hábitos de consumo para viver melhor?
Por Lydia Cintra

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

PREVENÇÃO À DEPENDÊNCIA QUÍMICA - Organizadora Maria Taís de Melo


VISÃO HISTÓRICA E CONTEXTUALIZADA
DO USO DE DROGAS


Introdução

Nos dias atuais, a palavra droga é rapidamente associada às substâncias que 
alteram estados da mente, proporcionando experiências de prazer/desprazer 
capazes de levar parte de seus usuários ao uso contínuo e à dependência. A 
palavra droga tornou-se também sinônimo de coisas ruins (aquilo que faz mal) 
e/ou de situações indesejadas (que droga!). O que chamamos hoje de droga 
está muito longe daquilo que, antes, essa palavra designava. 

A origem etimológica da palavra droga é incerta, porém ela pode ter 
sido derivada de drowa (árabe), cujo significado é bala de trigo, ou ainda de 
drooge vate (holandês), cujo significado é tonéis de folhas secas. Isso se deve 
ao fato de que, até muito recentemente, quase todos os medicamentos eram 
feitos à base de vegetais, embora tenhamos ainda hoje muitos vegetais como 
medicamentos.

A primeira língua a utilizar a palavra droga, tal como nós a conhecemos, foi 
o francês: drogue (ingrediente, tintura ou substância química ou farmacêutica, 
remédio, produto farmacêutico). Atualmente, a medicina define droga como: 
“qualquer substância capaz de modificar o funcionamento dos organismos vivos, 
resultando em mudanças fisiológicas ou de comportamento” (OMS, 1978). 

Portanto, nota-se que a palavra droga se refere a qualquer substância capaz 
de modificar o funcionamento orgânico, seja essa modificação considerada 
medicinal ou nociva. Os antigos, inclusive, não acreditavam que as drogas 
fossem exclusivamente boas ou más. 


Os gregos, por exemplo, entendiam que qualquer droga se constituía em um veneno potencial ou em remédio potencial, dependendo da dose, do objetivo do uso, da pureza, das condições de acesso a esse produto e dos modelos culturais de uso. 

As drogas capazes de alterar o funcionamento mental ou psíquico são 
denominadas drogas psicotrópicas ou simplesmente psicotrópicos. Psicotrópico 
advém da junção de psico (mente) e trópico (afinidade por). Desse modo, drogas 
psicotrópicas são aquelas que atuam sobre o nosso cérebro, alterando nossa 
maneira de sentir, de pensar e, muitas vezes, de agir. Mas essas alterações do 
nosso psiquismo não são iguais para toda e qualquer droga. 

Cada substância é 
capaz de causar diferentes reações. Uma parte das drogas psicotrópicas é capaz 
de causar dependência. Essas substâncias receberam a denominação de drogas 
de abuso, devido ao uso descontrolado observado com frequência entre os seus 
usuários.

1 - Aspectos históricos do uso de drogas

O uso de substâncias psicoativas é um fenômeno que acompanha a 
humanidade em diversos períodos de sua história, variando segundo critérios 
relativos a cada cultura, a cada época.  Ao longo da história, os homens utilizaram 
os produtos naturais para obter um estado alterado de consciência, em vários 
contextos − como religioso, místico, social, econômico, medicinal, cultural, 
psicológico, militar e, principalmente, busca do prazer. A alteração desse 
estado de consciência tinha por objetivo proporcionar melhor ligação com o 
sobrenatural/divino, como no caso do álcool, que era usado para favorecer o 
contato com os deuses. 

Na cultura grega e romana, o uso de bebidas alcoólicas, que já era de domínio 
dessas culturas, não se apresentava tão somente identificado com os rituais 
religiosos que, via de regra, permitiam um estado alterado de consciência, 
mas difundia-se como prática social relacionada às múltiplas facetas sociais, 
como festas, bodas, triunfos, vitórias, datas expressivas, jogos e todo tipo de 
manifestação de confraternização. 

Com o advento das conquistas, difundiram-se também entre outros povos, 
bem como implementaram-se outros usos. 

No período medieval, durante a ascendência e poder da Igreja, muitas pessoas, 
por conhecerem os efeitos psicoativos de plantas, foram mortas pela Inquisição 
para não colocar em risco o poder dominante da época. O uso de substâncias 
psicoativas, com exceção do álcool, era restrito e combatido. 




O álcool, no final da Idade Média, que era somente usado na forma 
destilada, propiciou sua disseminação/consumo. Na Idade Moderna, fatores 
como as grandes navegações e a Revolução Industrial - capitalismo (dominação 
e exploração) - propiciaram a concentração urbana, e a produção de bebidas 
passou a ser industrializada, aumentando o consumo de álcool. A intensificação 
do contato com outros continentes e países facilitou o intercâmbio de outras 
drogas. Portanto, é o período no qual o consumo de substâncias psicoativas 
tomou proporções preocupantes, pois, no início deste período, muitos 
retornaram de colônias localizadas na Ásia, na Índia, na África e no continente 
americano para seus países de origem, trazendo o costume de utilizar certas 
substâncias psicoativas para prazer ou remédio. 

Ao final do século XIX, houve um grande consumo de ópio, álcool, cigarro 
e xarope de coco e o início do uso de medicação injetável. No século XX, 
ocorreram duas guerras mundiais que incrementam o uso de anfetaminas para 
aumentar o rendimento dos soldados e da morfina para aliviar a dor dos feridos. 

Os sobreviventes retornavam trazendo essa prática com outra intencionalidade, 
ou seja, a busca do prazer. Na década de 50 e 60, com o fortalecimento do 
capitalismo no mundo ocidental pós-guerra, houve uma grande necessidade 
de mão de obra. Esse modelo econômico exigia, porém, que os trabalhadores 
fossem rápidos, ativos e, principalmente, sóbrios. 

Os jovens europeus e norte-americanos, que representavam uma parcela 
significativa da população, rebelaram-se contra esse modelo econômico. Os 
jovens americanos, principalmente, não aceitaram o chamado “sonho americano”, 
que preconizava igualdade de oportunidades, liberdade e prosperidade para 
todos, na medida em que observavam esse sonho desvanecer-se diante de uma 
realidade que era dura, injusta e brutal para vários segmentos da sociedade. 

Essa rebeldia, porém, era ameaçadora para a ordem social. Na França, não foi 
diferente. Os jovens organizaram-se em movimentos estudantis em Paris, que 
se espalharam pela Europa. 


O movimento hippie, nos EUA, questionava os valores da economia 
capitalista e buscava alternativas para viver. O prazer, a sexualidade (pílula 
anticoncepcional), o afeto e a religiosidade passaram a ser fundamentais. 
Formaram-se comunidades de vida alternativas, nas quais a cooperação era 
fundamental entre seus membros. Sexo, drogas e Rock’n roll eram expressões da 
“juventude transviada”, que ameaçava o sistema vigente, com o uso acentuado 
principalmente de duas substâncias alucinógenas: maconha e LSD. Em 1961, os 
EUA propuseram uma resolução na ONU que é seguida até os dias atuais, em 
que o consumo de drogas ilícitas é criminalizado. 

Nos anos 80, ocorreu a intensificação do uso de drogas psicoativas com 
acentuação para as sintéticas (produzidas em laboratório, como anfetaminas, 
ecstasy e outras), e estabeleceu-se a maior organização de “cartéis internacionais 
de drogas”, tendo na Colômbia sua concentração (cartel de Cali - Pablo Escobar). 
Com organização e ramificação pelo mundo, o tráfico de drogas passou a ser a 
segunda maior economia do mundo (só perde para a informática - produção de 
softwares e computadores) até os dias de hoje, mesmo com a ação repressora 
dos EUA e outros países que formam uma verdadeira ação de guerra ao tráfico 
de drogas. 

A década de 90 foi marcada por grande consumo de cocaína, numa 
visão mais individualista e de prazer fugaz pela vida, em que o importante é 
desfrutar o momento. Atualmente, o neoliberalismo e a globalização vêm 
sendo disseminados e seguidos por diversas nações, entre elas, o Brasil. 

Essa nova concepção econômica é caracterizada por uma redução na qualidade dos 
serviços públicos, como a saúde e a educação, bem como pela diminuição de 
proteção aos indivíduos mais carentes social e economicamente. Nessa ótica, o 
desemprego, a doença, o analfabetismo, a violência e a dependência ao uso de 
substâncias psicoativas passam a ser vistas como problemas não gerados pela 
sociedade, mas apontados como deficiências do próprio sujeito. 

Nesse sentido, em um país com desníveis sociais e econômicos acentuados 
como o Brasil, para uma grande parte da população excluída, o uso de substâncias 
psicoativas pode ocorrer para amenizar o sofrimento, diferentemente da busca 
pelo prazer como maior característica dos usuários dos países desenvolvidos. 
Diante disso, a sociedade brasileira procura formas de conter o avanço do 
consumo das substâncias psicoativas legais e ilegais. Está, nesse quadro, o uso 
indiscriminado de medicamentos.

De fato, desde os povos mais antigos − que faziam uso ritual tradicional de 
drogas que, de uma forma mais direta, não acarretava danos sociais, mas se 
prestava para gerar proximidade com o criador e com as coisas não possíveis − até 
as sociedades contemporâneas – em que o consumo de drogas psicoativas toma 
a forma de grave problema internacional, jurídico, policial e de saúde pública, 
que se inicia com a expansão do estilo de vida contracultural, primeiramente 
nas classes médias, a partir da década de 60 −, o uso de substâncias psicoativas 
mudou radicalmente na sua essência, nas finalidades e no rito de uso (VELHO, 
1980).

O abuso de drogas atual perpassa várias classes e instâncias sociais e relaciona-se 
com doenças e delinquências, entre outros problemas. Reconhecendo a 
gravidade das repercussões desse abuso na saúde das populações e seu custo 
social, a comunidade internacional empreende esforços para controlá-lo (VELHO, 1994).

Ações governamentais, visando ao controle das drogas, desenvolvem-se em 
diversas nações e envolvem a cooperação entre países. Incluem financiamento 
e cooperação técnica que, em alguns casos, demanda deslocamentos de 
equipamentos e de militares entre países. Na esfera jurídica, verificam-se 
reformulações legais revisando o alcance de punições de condutas relacionadas 
ao consumo, à produção e ao tráfico de drogas. Instituições sanitárias e 
educacionais investem, por todo o mundo, recursos financeiros e humanos na 
pesquisa e no controle do fenômeno.

Apesar de tudo isso, registra-se um aumento do uso/abuso e da dependência 
das diversas drogas, particularmente daquelas mais baratas, de maior difusão 
social e lamentavelmente da de maior impacto social – o crack. Também se 
tem registrado o aparecimento de novos tipos de drogas e, de forma singular, o 
recrudescimento de velhas dependências que estão além e no entorno da própria 
droga, como a compulsão pelo jogo, pelo sexo, pela internet, pelo consumo 
de mercadorias – que, guardando as devidas proporções, se assemelham à 
droga (COSTA; REBOLLETO; LOPES, 2007).

2. aspectos técnicos sobre o uso de drogas

Vários indicadores mostram que o consumo de drogas tem atingido formas e 
proporções preocupantes, especialmente nas últimas décadas. As consequências, 
diretas e indiretas, do uso abusivo de substâncias psicoativas são percebidas 
nas várias interfaces da vida social: na família, no trabalho, no trânsito, na 
disseminação do vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis, seus parceiros e 
crianças, no aumento da criminalidade etc. São justamente os “custos sociais” 
decorrentes do uso indevido de drogas, cada vez mais elevados, que tornam 
urgente uma ação enérgica e adequada do ponto de vista da saúde pública. 

Embora muitos estudos e ensaios sobre intervenções nos contextos 
motivados pelo fenômeno do uso indevido de drogas estejam sendo realizados, 
ainda nos deparamos com barreiras, como os interesses econômicos envolvidos 
na produção e na venda de drogas (lícitas e ilícitas), a incompreensão social do 
problema e a falta de recursos (humanos e materiais) para o seu tratamento. 
Ainda são insuficientes as investigações que abordam a questão em suas 
múltiplas dimensões, pois os estudos se reduzem, na sua quase totalidade, aos 
diagnósticos de situações e investigações sobre a consequência mais dolorosa 
do uso de drogas: a morte.


Quanto às políticas públicas em matéria de drogas, durante décadas, a 
maioria dos países (incluindo o Brasil) privilegiou a repressão das substâncias 
ilícitas, mas pouco se fez no campo da prevenção por meio da educação para a 
saúde. Paralelamente, as drogas lícitas, em particular o álcool e o tabaco, não 
mereceram nenhuma atenção e até foram alçadas, pela publicidade, à condição 
de promotoras de sucesso, poder, bom gosto e finesse.

Há sinais de que essas atitudes estejam mudando, e uma maior sensibilidade e 
adequação dos profissionais preocupados com o uso indevido de drogas possam 
nos conduzir a embates além dos de caráter moral, ideológico e metodológico. 
É possível que seja apontada a necessidade de uma reflexão mais aprofundada 
e corajosa sobre o uso de drogas em nossas sociedades, e que respostas mais 
libertárias e mais contextualizadas possam apresentar-se como alternativas 
13plausíveis para a construção de uma sociedade mais pacífica, justa e tolerante.

3. Custos sociais decorrentes do uso abusivo de drogas

Para estimar os custos relativos ao uso e ao abuso de drogas (lícitas e ilícitas) 
em termos de saúde pública, as pesquisas têm se pautado, principalmente, nos 
gastos com tratamento médico, na perda de produtividade de trabalhadores 
consumidores abusivos de drogas e nas perdas sociais decorrentes de mortes 
prematuras. Nos anos 90, o custo anual estimado nos Estados Unidos era superior 
a 100 bilhões de dólares e quase 20 bilhões no Brasil. Atualmente, estima-se que 
esses custos tenham se tornado cinco vezes maior, tanto nos Estados Unidos 
quanto aqui no Brasil. 

O Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas (SENAD, 1998) reportava que, 
no Brasil, os custos decorrentes do uso indevido de substâncias psicoativas 
estavam estimados em 7,9% do PIB por ano, ou seja, cerca de 28 bilhões de 
dólares (SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE - SP, 1996). O custo decorrente 
do tratamento de doenças ligadas ao uso de tabaco correspondia a 2,2% do 
PIB nacional e custos totais para o SUS das patologias relacionadas com uso 
de tabaco elevaram-se a R$ 925.276.195,75 (CHUTTI apud BUCHER, 1992). 

Contudo o tabaco não é usualmente incluído nas estatísticas sobre dependência 
química. A assistência especializada no tratamento das drogas ilícitas consumia, 
em contrapartida, o equivalente a 0,3% do PIB (BUCHER, 1992).

Segundo aquele Relatório, as internações decorrentes do uso abusivo e da 
dependência do álcool e de outras drogas também comportavam importantes 
custos sociais. No triênio de 1995 a 1997, mais de 310 milhões de reais foram 
gastos em internações decorrentes do uso abusivo e da dependência de álcool 
e outras drogas. Ainda nesse mesmo período, o alcoolismo ocupava o quarto 
lugar no grupo das doenças que mais incapacitavam, considerando a prevalência 
global.

Se multiplicarmos isso tudo por cinco, teremos hoje uma razoável ideia dos 
custos sociais do uso abusivo de drogas.

3 - Conclusão

O avanço das drogas nas sociedades e os impactos diretos e indiretos 
decorrentes desse avanço nos convidam a refletir sobre as formas mais plurais 
de conviver e dar respostas eficazes para esses problemas que emergem a cada 
dia. Se olhado pela frieza do número contido nos dados estatísticos, a maioria 
de nós é afetada, direta ou indiretamente, pelo uso/abuso, pela dependência,   
pelo tráfico de drogas e, quando não isso, pela violência associada a esses 
comportamentos sociais. Professores  de todos os níveis e séries, pais, líderes 
sociais e comunitários, profissionais de todas as categorias funcionais e todos 
os cidadãos precisam discutir e buscar respostas coletivas e adequadas a esse 
problema, que é multifacetado, cheio de implicativas, mas, acima de tudo, 
urgente. Devemos provocar inúmeros debates e fóruns de discussões para que 
todos os setores possam ser ouvidos e, a partir dessa consulta nacional, ajustar 
condutas pautadas pela Justiça, pela Democracia e pela Ética. 
Talvez não encontremos resposta fácil para esse problema tão complexo e 
urgente, mas teremos de ser corajosos.


4 - Referências

BUCHER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
COSTA, M. C. S.; REBOLLEDO, N. O.; LOPES, L. M. Uso de drogas no Chile: pesquisa 
documental e bibliográfica. SMAD - Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. 
Ed. port., v. 3, n. 1, fev. 2007. 

OLIVEIRA, S. R. M.  Ideologia no discurso sobre as drogas. 1992. Dissertação 
(Mestrado) - Universidade de Brasília, UnB, Brasília, 1992. 

SEED - SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Viver 
livre das drogas: política de educação preventiva. Florianópolis, 2002.

SENAD. Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas. BSB, nov. 1998. 

VELHO, G.  Dimensão cultural e política do mundo das drogas. Projeto e 
metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar Editores, 1994.
 ______. Uma perspectiva antropológica do uso de droga. J. Bras. Psiquiatria, 
ano 6, n. 29, p. 355-358, 1980.