VISÃO HISTÓRICA E CONTEXTUALIZADA
DO USO DE DROGAS
Introdução
Nos dias atuais, a palavra droga é rapidamente associada às substâncias que
alteram estados da mente, proporcionando experiências de prazer/desprazer
capazes de levar parte de seus usuários ao uso contínuo e à dependência. A
palavra droga tornou-se também sinônimo de coisas ruins (aquilo que faz mal)
e/ou de situações indesejadas (que droga!). O que chamamos hoje de droga
está muito longe daquilo que, antes, essa palavra designava.
A origem etimológica da palavra droga é incerta, porém ela pode ter
sido derivada de drowa (árabe), cujo significado é bala de trigo, ou ainda de
drooge vate (holandês), cujo significado é tonéis de folhas secas. Isso se deve
ao fato de que, até muito recentemente, quase todos os medicamentos eram
feitos à base de vegetais, embora tenhamos ainda hoje muitos vegetais como
medicamentos.
A primeira língua a utilizar a palavra droga, tal como nós a conhecemos, foi
o francês: drogue (ingrediente, tintura ou substância química ou farmacêutica,
remédio, produto farmacêutico). Atualmente, a medicina define droga como:
“qualquer substância capaz de modificar o funcionamento dos organismos vivos,
resultando em mudanças fisiológicas ou de comportamento” (OMS, 1978).
Portanto, nota-se que a palavra droga se refere a qualquer substância capaz
de modificar o funcionamento orgânico, seja essa modificação considerada
medicinal ou nociva. Os antigos, inclusive, não acreditavam que as drogas
fossem exclusivamente boas ou más.
Os gregos, por exemplo, entendiam que qualquer droga se constituía em um veneno potencial ou em remédio potencial, dependendo da dose, do objetivo do uso, da pureza, das condições de acesso a esse produto e dos modelos culturais de uso.
As drogas capazes de alterar o funcionamento mental ou psíquico são
denominadas drogas psicotrópicas ou simplesmente psicotrópicos. Psicotrópico
advém da junção de psico (mente) e trópico (afinidade por). Desse modo, drogas
psicotrópicas são aquelas que atuam sobre o nosso cérebro, alterando nossa
maneira de sentir, de pensar e, muitas vezes, de agir. Mas essas alterações do
nosso psiquismo não são iguais para toda e qualquer droga.
Cada substância é
capaz de causar diferentes reações. Uma parte das drogas psicotrópicas é capaz
de causar dependência. Essas substâncias receberam a denominação de drogas
de abuso, devido ao uso descontrolado observado com frequência entre os seus
usuários.
1 - Aspectos históricos do uso de drogas
O uso de substâncias psicoativas é um fenômeno que acompanha a
humanidade em diversos períodos de sua história, variando segundo critérios
relativos a cada cultura, a cada época. Ao longo da história, os homens utilizaram
os produtos naturais para obter um estado alterado de consciência, em vários
contextos − como religioso, místico, social, econômico, medicinal, cultural,
psicológico, militar e, principalmente, busca do prazer. A alteração desse
estado de consciência tinha por objetivo proporcionar melhor ligação com o
sobrenatural/divino, como no caso do álcool, que era usado para favorecer o
contato com os deuses.
Na cultura grega e romana, o uso de bebidas alcoólicas, que já era de domínio
dessas culturas, não se apresentava tão somente identificado com os rituais
religiosos que, via de regra, permitiam um estado alterado de consciência,
mas difundia-se como prática social relacionada às múltiplas facetas sociais,
como festas, bodas, triunfos, vitórias, datas expressivas, jogos e todo tipo de
manifestação de confraternização.
Com o advento das conquistas, difundiram-se também entre outros povos,
bem como implementaram-se outros usos.
No período medieval, durante a ascendência e poder da Igreja, muitas pessoas,
por conhecerem os efeitos psicoativos de plantas, foram mortas pela Inquisição
para não colocar em risco o poder dominante da época. O uso de substâncias
psicoativas, com exceção do álcool, era restrito e combatido.
O álcool, no final da Idade Média, que era somente usado na forma
destilada, propiciou sua disseminação/consumo. Na Idade Moderna, fatores
como as grandes navegações e a Revolução Industrial - capitalismo (dominação
e exploração) - propiciaram a concentração urbana, e a produção de bebidas
passou a ser industrializada, aumentando o consumo de álcool. A intensificação
do contato com outros continentes e países facilitou o intercâmbio de outras
drogas. Portanto, é o período no qual o consumo de substâncias psicoativas
tomou proporções preocupantes, pois, no início deste período, muitos
retornaram de colônias localizadas na Ásia, na Índia, na África e no continente
americano para seus países de origem, trazendo o costume de utilizar certas
substâncias psicoativas para prazer ou remédio.
Ao final do século XIX, houve um grande consumo de ópio, álcool, cigarro
e xarope de coco e o início do uso de medicação injetável. No século XX,
ocorreram duas guerras mundiais que incrementam o uso de anfetaminas para
aumentar o rendimento dos soldados e da morfina para aliviar a dor dos feridos.
Os sobreviventes retornavam trazendo essa prática com outra intencionalidade,
ou seja, a busca do prazer. Na década de 50 e 60, com o fortalecimento do
capitalismo no mundo ocidental pós-guerra, houve uma grande necessidade
de mão de obra. Esse modelo econômico exigia, porém, que os trabalhadores
fossem rápidos, ativos e, principalmente, sóbrios.
Os jovens europeus e norte-americanos, que representavam uma parcela
significativa da população, rebelaram-se contra esse modelo econômico. Os
jovens americanos, principalmente, não aceitaram o chamado “sonho americano”,
que preconizava igualdade de oportunidades, liberdade e prosperidade para
todos, na medida em que observavam esse sonho desvanecer-se diante de uma
realidade que era dura, injusta e brutal para vários segmentos da sociedade.
Essa rebeldia, porém, era ameaçadora para a ordem social. Na França, não foi
diferente. Os jovens organizaram-se em movimentos estudantis em Paris, que
se espalharam pela Europa.
O movimento hippie, nos EUA, questionava os valores da economia
capitalista e buscava alternativas para viver. O prazer, a sexualidade (pílula
anticoncepcional), o afeto e a religiosidade passaram a ser fundamentais.
Formaram-se comunidades de vida alternativas, nas quais a cooperação era
fundamental entre seus membros. Sexo, drogas e Rock’n roll eram expressões da
“juventude transviada”, que ameaçava o sistema vigente, com o uso acentuado
principalmente de duas substâncias alucinógenas: maconha e LSD. Em 1961, os
EUA propuseram uma resolução na ONU que é seguida até os dias atuais, em
que o consumo de drogas ilícitas é criminalizado.
Nos anos 80, ocorreu a intensificação do uso de drogas psicoativas com
acentuação para as sintéticas (produzidas em laboratório, como anfetaminas,
ecstasy e outras), e estabeleceu-se a maior organização de “cartéis internacionais
de drogas”, tendo na Colômbia sua concentração (cartel de Cali - Pablo Escobar).
Com organização e ramificação pelo mundo, o tráfico de drogas passou a ser a
segunda maior economia do mundo (só perde para a informática - produção de
softwares e computadores) até os dias de hoje, mesmo com a ação repressora
dos EUA e outros países que formam uma verdadeira ação de guerra ao tráfico
de drogas.
A década de 90 foi marcada por grande consumo de cocaína, numa
visão mais individualista e de prazer fugaz pela vida, em que o importante é
desfrutar o momento. Atualmente, o neoliberalismo e a globalização vêm
sendo disseminados e seguidos por diversas nações, entre elas, o Brasil.
Essa nova concepção econômica é caracterizada por uma redução na qualidade dos
serviços públicos, como a saúde e a educação, bem como pela diminuição de
proteção aos indivíduos mais carentes social e economicamente. Nessa ótica, o
desemprego, a doença, o analfabetismo, a violência e a dependência ao uso de
substâncias psicoativas passam a ser vistas como problemas não gerados pela
sociedade, mas apontados como deficiências do próprio sujeito.
Nesse sentido, em um país com desníveis sociais e econômicos acentuados
como o Brasil, para uma grande parte da população excluída, o uso de substâncias
psicoativas pode ocorrer para amenizar o sofrimento, diferentemente da busca
pelo prazer como maior característica dos usuários dos países desenvolvidos.
Diante disso, a sociedade brasileira procura formas de conter o avanço do
consumo das substâncias psicoativas legais e ilegais. Está, nesse quadro, o uso
indiscriminado de medicamentos.
De fato, desde os povos mais antigos − que faziam uso ritual tradicional de
drogas que, de uma forma mais direta, não acarretava danos sociais, mas se
prestava para gerar proximidade com o criador e com as coisas não possíveis − até
as sociedades contemporâneas – em que o consumo de drogas psicoativas toma
a forma de grave problema internacional, jurídico, policial e de saúde pública,
que se inicia com a expansão do estilo de vida contracultural, primeiramente
nas classes médias, a partir da década de 60 −, o uso de substâncias psicoativas
mudou radicalmente na sua essência, nas finalidades e no rito de uso (VELHO,
1980).
O abuso de drogas atual perpassa várias classes e instâncias sociais e relaciona-se
com doenças e delinquências, entre outros problemas. Reconhecendo a
gravidade das repercussões desse abuso na saúde das populações e seu custo
social, a comunidade internacional empreende esforços para controlá-lo (VELHO, 1994).
Ações governamentais, visando ao controle das drogas, desenvolvem-se em
diversas nações e envolvem a cooperação entre países. Incluem financiamento
e cooperação técnica que, em alguns casos, demanda deslocamentos de
equipamentos e de militares entre países. Na esfera jurídica, verificam-se
reformulações legais revisando o alcance de punições de condutas relacionadas
ao consumo, à produção e ao tráfico de drogas. Instituições sanitárias e
educacionais investem, por todo o mundo, recursos financeiros e humanos na
pesquisa e no controle do fenômeno.
Apesar de tudo isso, registra-se um aumento do uso/abuso e da dependência
das diversas drogas, particularmente daquelas mais baratas, de maior difusão
social e lamentavelmente da de maior impacto social – o crack. Também se
tem registrado o aparecimento de novos tipos de drogas e, de forma singular, o
recrudescimento de velhas dependências que estão além e no entorno da própria
droga, como a compulsão pelo jogo, pelo sexo, pela internet, pelo consumo
de mercadorias – que, guardando as devidas proporções, se assemelham à
droga (COSTA; REBOLLETO; LOPES, 2007).
2. aspectos técnicos sobre o uso de drogas
Vários indicadores mostram que o consumo de drogas tem atingido formas e
proporções preocupantes, especialmente nas últimas décadas. As consequências,
diretas e indiretas, do uso abusivo de substâncias psicoativas são percebidas
nas várias interfaces da vida social: na família, no trabalho, no trânsito, na
disseminação do vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis, seus parceiros e
crianças, no aumento da criminalidade etc. São justamente os “custos sociais”
decorrentes do uso indevido de drogas, cada vez mais elevados, que tornam
urgente uma ação enérgica e adequada do ponto de vista da saúde pública.
Embora muitos estudos e ensaios sobre intervenções nos contextos
motivados pelo fenômeno do uso indevido de drogas estejam sendo realizados,
ainda nos deparamos com barreiras, como os interesses econômicos envolvidos
na produção e na venda de drogas (lícitas e ilícitas), a incompreensão social do
problema e a falta de recursos (humanos e materiais) para o seu tratamento.
Ainda são insuficientes as investigações que abordam a questão em suas
múltiplas dimensões, pois os estudos se reduzem, na sua quase totalidade, aos
diagnósticos de situações e investigações sobre a consequência mais dolorosa
do uso de drogas: a morte.
Quanto às políticas públicas em matéria de drogas, durante décadas, a
maioria dos países (incluindo o Brasil) privilegiou a repressão das substâncias
ilícitas, mas pouco se fez no campo da prevenção por meio da educação para a
saúde. Paralelamente, as drogas lícitas, em particular o álcool e o tabaco, não
mereceram nenhuma atenção e até foram alçadas, pela publicidade, à condição
de promotoras de sucesso, poder, bom gosto e finesse.
Há sinais de que essas atitudes estejam mudando, e uma maior sensibilidade e
adequação dos profissionais preocupados com o uso indevido de drogas possam
nos conduzir a embates além dos de caráter moral, ideológico e metodológico.
É possível que seja apontada a necessidade de uma reflexão mais aprofundada
e corajosa sobre o uso de drogas em nossas sociedades, e que respostas mais
libertárias e mais contextualizadas possam apresentar-se como alternativas
13plausíveis para a construção de uma sociedade mais pacífica, justa e tolerante.
3. Custos sociais decorrentes do uso abusivo de drogas
Para estimar os custos relativos ao uso e ao abuso de drogas (lícitas e ilícitas)
em termos de saúde pública, as pesquisas têm se pautado, principalmente, nos
gastos com tratamento médico, na perda de produtividade de trabalhadores
consumidores abusivos de drogas e nas perdas sociais decorrentes de mortes
prematuras. Nos anos 90, o custo anual estimado nos Estados Unidos era superior
a 100 bilhões de dólares e quase 20 bilhões no Brasil. Atualmente, estima-se que
esses custos tenham se tornado cinco vezes maior, tanto nos Estados Unidos
quanto aqui no Brasil.
O Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas (SENAD, 1998) reportava que,
no Brasil, os custos decorrentes do uso indevido de substâncias psicoativas
estavam estimados em 7,9% do PIB por ano, ou seja, cerca de 28 bilhões de
dólares (SECRETARIA DE ESTADO DA SAÚDE - SP, 1996). O custo decorrente
do tratamento de doenças ligadas ao uso de tabaco correspondia a 2,2% do
PIB nacional e custos totais para o SUS das patologias relacionadas com uso
de tabaco elevaram-se a R$ 925.276.195,75 (CHUTTI apud BUCHER, 1992).
Contudo o tabaco não é usualmente incluído nas estatísticas sobre dependência
química. A assistência especializada no tratamento das drogas ilícitas consumia,
em contrapartida, o equivalente a 0,3% do PIB (BUCHER, 1992).
Segundo aquele Relatório, as internações decorrentes do uso abusivo e da
dependência do álcool e de outras drogas também comportavam importantes
custos sociais. No triênio de 1995 a 1997, mais de 310 milhões de reais foram
gastos em internações decorrentes do uso abusivo e da dependência de álcool
e outras drogas. Ainda nesse mesmo período, o alcoolismo ocupava o quarto
lugar no grupo das doenças que mais incapacitavam, considerando a prevalência
global.
Se multiplicarmos isso tudo por cinco, teremos hoje uma razoável ideia dos
custos sociais do uso abusivo de drogas.
3 - Conclusão
O avanço das drogas nas sociedades e os impactos diretos e indiretos
decorrentes desse avanço nos convidam a refletir sobre as formas mais plurais
de conviver e dar respostas eficazes para esses problemas que emergem a cada
dia. Se olhado pela frieza do número contido nos dados estatísticos, a maioria
de nós é afetada, direta ou indiretamente, pelo uso/abuso, pela dependência,
pelo tráfico de drogas e, quando não isso, pela violência associada a esses
comportamentos sociais. Professores de todos os níveis e séries, pais, líderes
sociais e comunitários, profissionais de todas as categorias funcionais e todos
os cidadãos precisam discutir e buscar respostas coletivas e adequadas a esse
problema, que é multifacetado, cheio de implicativas, mas, acima de tudo,
urgente. Devemos provocar inúmeros debates e fóruns de discussões para que
todos os setores possam ser ouvidos e, a partir dessa consulta nacional, ajustar
condutas pautadas pela Justiça, pela Democracia e pela Ética.
Talvez não encontremos resposta fácil para esse problema tão complexo e
urgente, mas teremos de ser corajosos.
4 - Referências
BUCHER, R. Drogas e drogadição no Brasil. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
COSTA, M. C. S.; REBOLLEDO, N. O.; LOPES, L. M. Uso de drogas no Chile: pesquisa
documental e bibliográfica. SMAD - Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog.
Ed. port., v. 3, n. 1, fev. 2007.
OLIVEIRA, S. R. M. Ideologia no discurso sobre as drogas. 1992. Dissertação
(Mestrado) - Universidade de Brasília, UnB, Brasília, 1992.
SEED - SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Educação e do Desporto. Viver
livre das drogas: política de educação preventiva. Florianópolis, 2002.
SENAD. Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas. BSB, nov. 1998.
VELHO, G. Dimensão cultural e política do mundo das drogas. Projeto e
metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editores, 1994.
______. Uma perspectiva antropológica do uso de droga. J. Bras. Psiquiatria,
ano 6, n. 29, p. 355-358, 1980.